“Rute foi então para os campos e pôs-se a apanhar as espigas que os ceifeiros deixavam ficar”
Rute 2:3
colhe
com os olhos que tem nas mãos
o que outros deixam ficar
ou não vêem colhe espigas soltas
como pontas de novelos
é o cuidado dos bicos longos
do flamingo posto nos dedos
Rute sabe que colhe
onde não semeou
nos campos de Booz
sabe que colhe o pão que
lhe disseminará na mesa de cada dia
mas não sabe que nesse gesto
de ceifeira pobre semeia
brasas de sol
em outros olhos que têm mãos
29/10/11
Nova vida, abundante vida, tudo quanto pode proporcionar um encontro pessoal e radical com uma pessoa especial. A contracultura da nova criação, em Jesus Cristo. N.B.: Este blog está em desacordo com o chamado novo acordo ortográfico de 1990.
segunda-feira, outubro 31, 2011
quinta-feira, outubro 27, 2011
MADRUGADA
“O que precisa nascer
aparece no sonho buscando
frinchas no teto”
Adélia Prado, “Alvará de demolição”
O que precisa nascer
faz no tecto o soalho
e abre frinchas onde colocámos
os pensamentos
pois sobre as nossas cabeças
jaz um chão
de pedra ou magma
onde busca a água
e possui os minerais
desse chão nocturno de folhas
fissuradas do sonho
se levantam os ramos
do inalcançável
é lá que flutuam
as aves
27/10/11
quinta-feira, outubro 20, 2011
EXTENSÃO
“…para amar queria a terra toda, para morrer bastam-me os flancos do silêncio”
Eugénio de Andrade, “Seja isto dito assim” (Memória doutro rio)
para navegar
toda a água é oceano
e o astrolábio é navio
para cantar todo o corpo
é peito e fornalha na voz
se quero rir tiro a máscara antiga
se quero sonhar estendo o coração
para lá das ruínas
para morrer tão pouco me basta
que os olhos se calem sobre o teu flanco
para te amar uma ilha é ainda pouco
só me chega a terra toda
09/10/11
Eugénio de Andrade, “Seja isto dito assim” (Memória doutro rio)
para navegar
toda a água é oceano
e o astrolábio é navio
para cantar todo o corpo
é peito e fornalha na voz
se quero rir tiro a máscara antiga
se quero sonhar estendo o coração
para lá das ruínas
para morrer tão pouco me basta
que os olhos se calem sobre o teu flanco
para te amar uma ilha é ainda pouco
só me chega a terra toda
09/10/11
QUANDO SAÍRES DE ÍTACA
Quando saíres de Ítaca, Ulisses,
os cavalos deixarão Ítaca
vão todos contigo para um único galope
na ágora de Ílion
vão todos, as suas crinas cinza
ondulam na vibração da cabeleira
de Posídon
ficará Ítaca despovoada
de cavalos
e cavaleiros, nem os navios
desfilarão nas avenidas
marítimas da cidade
ao partires de Ítaca,
restará apenas
o fio tenso
do arco e do tear
o fio denso
do horizonte
que a tua mão traçará
estendida de um extremo
ao outro do mar
sem cavalos, ficarão em Ítaca
apenas homens a pé
soldados de infantaria
sem general
15/10/11
os cavalos deixarão Ítaca
vão todos contigo para um único galope
na ágora de Ílion
vão todos, as suas crinas cinza
ondulam na vibração da cabeleira
de Posídon
ficará Ítaca despovoada
de cavalos
e cavaleiros, nem os navios
desfilarão nas avenidas
marítimas da cidade
ao partires de Ítaca,
restará apenas
o fio tenso
do arco e do tear
o fio denso
do horizonte
que a tua mão traçará
estendida de um extremo
ao outro do mar
sem cavalos, ficarão em Ítaca
apenas homens a pé
soldados de infantaria
sem general
15/10/11
sábado, outubro 01, 2011
DA MATÉRIA DO POEMA
“Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar”
Florbela Espanca, “Torre de névoa”
o meu poema não habita
em torres de névoa não há espera matinal
por D. Sebastião
morreram todos eles para sempre
e os seus corpos secaram
nos dentes dos chacais
em Alcácer-Quibir
no meu poema não ardem baixo os luares
sobre as águas
no meu poema há só o sol a prumo
não há Ítacas, Társis nem Índias
de fuga ou nostalgia
há a amplidão nítida dos rios
que duma mão nascem e na outra desaguam
no meu poema há a outra margem
uma terra toda inteira
ainda sem nome nem padrão
de descoberta
30/09/11
Feita de fumo, névoas e luar”
Florbela Espanca, “Torre de névoa”
o meu poema não habita
em torres de névoa não há espera matinal
por D. Sebastião
morreram todos eles para sempre
e os seus corpos secaram
nos dentes dos chacais
em Alcácer-Quibir
no meu poema não ardem baixo os luares
sobre as águas
no meu poema há só o sol a prumo
não há Ítacas, Társis nem Índias
de fuga ou nostalgia
há a amplidão nítida dos rios
que duma mão nascem e na outra desaguam
no meu poema há a outra margem
uma terra toda inteira
ainda sem nome nem padrão
de descoberta
30/09/11
FUTURO PERFEITO
“Cantar
é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras”
Carlos de Oliveira
se cantamos
cortamos a vida
deixamos para trás
o rasto de nós
perdemos ao longo da terra
as lágrimas
o que perdido estava
deixámo-lo ir na corrente
para onde escorriam os nossos olhos
tínhamos um encontro ali
marcado com as cidades futuras
para isso empurrámos o tempo
e arrancámos o espaço
no coração em sangue
nos lábios ainda tenros
cantar
é percorrer ruas
ainda por abrir
25/09/11
é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras”
Carlos de Oliveira
se cantamos
cortamos a vida
deixamos para trás
o rasto de nós
perdemos ao longo da terra
as lágrimas
o que perdido estava
deixámo-lo ir na corrente
para onde escorriam os nossos olhos
tínhamos um encontro ali
marcado com as cidades futuras
para isso empurrámos o tempo
e arrancámos o espaço
no coração em sangue
nos lábios ainda tenros
cantar
é percorrer ruas
ainda por abrir
25/09/11
quarta-feira, setembro 21, 2011
CONFISSÃO
passei sobre as árvores
fiz-me familiar
da nudez áspera dos picos
transpus os ares de ilharga fria
mordi nos lábios
o sangue turvado
estendi os braços e até estes
quase me abandonaram
passei pelas entranhas do pesadelo
deixando uma rasto de vento
que teimava
em se incrustar nos pés
passei, febril, ferido
por salteadores da noite
para ao cabo de tudo ao cabo do mar
no orvalho da espuma
te encontrar
17/09/11
fiz-me familiar
da nudez áspera dos picos
transpus os ares de ilharga fria
mordi nos lábios
o sangue turvado
estendi os braços e até estes
quase me abandonaram
passei pelas entranhas do pesadelo
deixando uma rasto de vento
que teimava
em se incrustar nos pés
passei, febril, ferido
por salteadores da noite
para ao cabo de tudo ao cabo do mar
no orvalho da espuma
te encontrar
17/09/11
sábado, setembro 10, 2011
TRATADO DA LEVEZA
κοῦφον γὰρ χρῆμα ποιητής ἐστιν καὶ πτηνόν καὶ ἱερόν
“leve, alada e sagrada coisa é o poeta”
Sócrates, em Platão, Íon 534b
o poeta pousa
sobre a face do mundo
penas são no jogo do voo
mas isentos de sossego
a leveza logo pousa no vento
pensando bem, a essência do poeta
é alada o seu coração está nos espaços siderais
a voz na nomeação das estrelas
como um homem santo
cujas mãos habitam na contemplação das sarças
a que elas próprias lançaram o fogo do monte
à escuta em cada grão que se solta rubro
do crepitar de Deus
o poeta toca com as asas
na face do mundo
deus longínquo que se chega
e nos aproxima
de nós
5/09/11
“leve, alada e sagrada coisa é o poeta”
Sócrates, em Platão, Íon 534b
o poeta pousa
sobre a face do mundo
penas são no jogo do voo
mas isentos de sossego
a leveza logo pousa no vento
pensando bem, a essência do poeta
é alada o seu coração está nos espaços siderais
a voz na nomeação das estrelas
como um homem santo
cujas mãos habitam na contemplação das sarças
a que elas próprias lançaram o fogo do monte
à escuta em cada grão que se solta rubro
do crepitar de Deus
o poeta toca com as asas
na face do mundo
deus longínquo que se chega
e nos aproxima
de nós
5/09/11
GROUND MINUS ZERO
“O conselho dos anciãos já não se reúne às portas da cidade nem os jovens tocam os seus instrumentos de música.”
Lamentações de Jeremias 5:14
tudo cessou naquela manhã
quando os pássaros se desviaram da rota
em que as andorinhas se tornaram
abutres de sangue dragões de fogo
de cor negra manchando o azul
tudo cessou nas bocas, o canto
mesmo o espanto, os murmúrios
dos velhos nas portas, nos jardins
as flores foram as primeiras a beber
a morte, quando uma mão
as pintou de cinza, tão cinza como ela
tudo cessou, a música
que a cidade se habituou
a ouvir enchendo as ruas vibrando
nos arranha-céus foi na saudade
tudo se precipitou nos buracos da terra,
mas ei-los de novo no rés-do-chão
eis de novo as árvores com alma de Fénix
ei-las de novo com porte e copas de vida
11/09/11
para o 10.º aniversário do 11 de Setembro
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11 de Setembro,
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Rui Miguel Duarte
quinta-feira, setembro 01, 2011
RICOS
Charles Aznavour, em entrevista ao noticiário das 20h da TF1, acabou de dizer que estaria disposto a contribuir pessoalmente com o aumento dos impostos sobre os rendimentos dos ricos. Mas que essa não era a sua missão; se o governo lho pedisse, não lhe caberia a ele forçar essa contribuição, mas estaria disposto a aderir. Mas isso é em França, pois em Portugal ricos não existem.
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Impostos sobre os ricos,
Portugal
segunda-feira, agosto 22, 2011
ΤΕΤΕΛΕΣΤΑΙ (TETELESTAI)
“Tudo está cumprido.”
Evangelho segundo João 19:30
Para sempre se desfizeram
os equívocos dos espelhos
para sempre ficaram em branco
os velhos teares
cobriram-se de pó
as mãos que acendiam a chama
o ar mudou no coração
do eclipse
deixou de ser possível
continuar a percorrer
os extintos valados
já não são navegáveis
as águas de outrora
tornaram-se salobras
na pele
de espinhos cravados nas pupilas
sentimos escorrer pelos dedos
no suor e no sangue
o fim
o necessário fim
22/08/11
segunda-feira, agosto 15, 2011
PARÁBOLA DA SEMENTE
A semente saiu da mão
partiu para onde a levasse
a ausência de asas
pois não foi destinada
a ganhar raiz
nos bicos dos pássaros
rumou para uma terra qualquer
mas não foi destinada
a perder-se no anonimato
dos espinhos
nem a fundir-se com o sol
nas pedras
ao ser lançada, foram-lhe
dados pela mão ângulos no voo
e assim partiu ela incendiada
no vento por uma terra, essa terra
que a escolhesse,
a semente partiu da mão
e encontrou quem lhe desse
raiz um leito e água
onde ela morreu, sonhou
e a sua alma subiu
com carne de árvore
12/08/11
FÁBULA DA ESPIGA
A espiga tinha de se mostrar
ao sol de esquecer o passado
os dias da semente
e as noites do caule
tinha de crescer de cortar
rente o sono de abandonar
no chão a sua névoa
e seguir com o vento
tinha de conhecer
o segredo do céu
mostrar-se ao sol
e seguir com o vento
era-lhe necessário
assim faz o ouro
e à espiga restava
aprender
tinha apenas
de rasgar o tegumento
e para lá do restolho
ser
13/08/11
DE MANHÃ
“Un vague bonheur leur était élan et ménace”
Nic Klecker, “Matin” (conto), in Jadis au village
A manhã de Outono veio trazer prenúncios
de Inverno e sombras de geada
veio montada nos raios oblíquos
e conduziu as rodas das bicicletas
uma em direcção à outra
dele e dela
uma brisa fresca
juntou-se ao encontro
que seria a dois
estavam eles conscientes
do mistério do dia?
foi-lhes ele anunciado na noite já distante?
tê-la-ia ele visitado, ter-lhe-ia ela
franqueado o ardor do umbral?
ter-se-iam amado no corpo
do sonho? as mãos
eram jovens e virgens
ainda seguravam
os guiadores das bicicletas
e os olhos de um faziam tangentes
nos do outro
decidiriam unir-se
para o receio e a ousadia do salto
para a existência e a aventura?
os peitos respiravam ténues
o mesmo ar de sol e gelo
debruçados sobre as bicicletas
os sentimentos eram felizes
os corações abriam-se em ramos de flores
para a beleza palpitante
um do outro
14/08/11
sábado, agosto 06, 2011
CEGO
o dia estava tão belo
e ele não o podia ver
os dedos estendidos
levavam os olhos e procuravam
estrelas à vista desarmada
o mundo era tão belo
povoado de árvores,
rios e sombras
e ele não o podia ver
nos olhos que lhe restavam
projectava pessoas às cores
que podiam ver
os ouvidos teciam ventos
e seres voláteis que pousavam
na sombra do seu ombro
ele não podia ver
ele era uma dessas sombras
do dia e do mundo
que ele podia ver
mas que não o podiam ver
5/08/11
L’AVEUGLE
le jour était si beau
et il ne pouvait pas le voir
les doigts tendus
portaient les yeux et cherchaient
des étoiles à l’œil nu
le monde était si beau
peuplé d’arbres,
de fleuves et d’ombres
et il ne pouvait pas le voir
dans les yeux qui lui restaient
il projetait des gens en couleurs
qui pouvaient entendre
les oreilles tissaient des vents
et des êtres volatils qui atterrissaient
sur l’ombre de son épaule
il ne pouvait pas voir
il était une de ces ombres
du jour et du monde
qu’il pouvait voir
mais qui ne pouvaient le voir
06/08/11
(trad. par l'Auteur)
e ele não o podia ver
os dedos estendidos
levavam os olhos e procuravam
estrelas à vista desarmada
o mundo era tão belo
povoado de árvores,
rios e sombras
e ele não o podia ver
nos olhos que lhe restavam
projectava pessoas às cores
que podiam ver
os ouvidos teciam ventos
e seres voláteis que pousavam
na sombra do seu ombro
ele não podia ver
ele era uma dessas sombras
do dia e do mundo
que ele podia ver
mas que não o podiam ver
5/08/11
L’AVEUGLE
le jour était si beau
et il ne pouvait pas le voir
les doigts tendus
portaient les yeux et cherchaient
des étoiles à l’œil nu
le monde était si beau
peuplé d’arbres,
de fleuves et d’ombres
et il ne pouvait pas le voir
dans les yeux qui lui restaient
il projetait des gens en couleurs
qui pouvaient entendre
les oreilles tissaient des vents
et des êtres volatils qui atterrissaient
sur l’ombre de son épaule
il ne pouvait pas voir
il était une de ces ombres
du jour et du monde
qu’il pouvait voir
mais qui ne pouvaient le voir
06/08/11
(trad. par l'Auteur)
Etiquetas:
Rui Miguel Duarte
Local:
Herserange, France
domingo, julho 31, 2011
O MISTERIOSO JESUS: NOTA DE LEITURA
O MISTERIOSO JESUS
“Mas vós, quem dizeis que eu sou?” Marcos 8:29
Estas palavras deram o mote e título ao livro primeiro livro de Manuel Rainho, embrião do presente O misterioso Jesus. E através delas aquele mesmo que as pronunciou deixava já entrever os questionamentos, apreensões, adesões e recusas que o seu nome, a sua pessoa e a sua mera existência suscitariam ao longo de séculos, e ainda hoje, não deixaram de suscitar.
Jesus histórico versus Jesus da fé, Jesus mentiroso ou louco, o Jesus humano e divino, o judeu, o pagão e o místico, as lendas dos milagres, os mitos do nascimento e da ressurreição, a conspiração cristã de divinização de Jesus como o Cristo — variações em torno do questionamento, que começaram a tomar forma e substância com o Iluminismo e Racionalismo, e com a reivindicação que estes fizeram de arautos da liberdade de pensamento em relação ao dogma religioso, até hoje. Mas que nada — ou pouco — trouxeram para a tribuna dos debates, antes reavivaram e rem reavivado vetustos questionamentos.
Com efeito, gerou-se a ideia de que os cristãos eram/são acríticos e crédulos. O seu discurso e pensamento feridos de religiosidade e dogmatismo. Um novo paradigma de pensamento, livre, crítico, inquiridor, racionalista e científico impôs-se. Todavia, ao dogma substituiu-se outro dogma — mais acrítico do que aquele que combatia. À religião e crença cristã substituiu-se outra, mais religiosa ainda — com mais liturgias e credos do que aquele que combatia, em nome do ateísmo. Ao factor Deus substituiu-se o não-Deus. E este paradigma tem dominado a intelectualidade de tal modo que ser intelectual se tornou sinónimo de agnóstico, ateu e anti-cristão. Estes são os factos.
Manuel Rainho permitiu-se que o questionamento se fizesse na sua alma e na sua mente. E sorveu até ao fim todos os cálices de teorias, hipóteses e teses. E cuidadosamente as lê, procura compreender, analisar e, como intelectual livre e responsável, submeter a escrutínio. Sim, porque não há teses que se não possam sujeitar a escrutínio. Se as teses cristãs o foram, não poderiam jamais os proponentes das histórico-críticas, e outras, escapar a essa necessidade e condição. Erigiram um monumento tautológico, cujas proposições se sustentam em premissas que são as próprias conclusões. E essas conclusões, tomadas pois antes mesmo da investigação da sustentabilidade das hipóteses propostas, partem as mais das vezes de preconceitos, pré-juízos anti-cristãos, naturalistas, de pressupostos filosóficos ateus, do “não-Deus” e, pior ainda, de puras especulações e exercícios de imaginação. Tudo é possível e crível, menos o testemunho acerca de Jesus Cristo transmitido pelo Novo Testamento. Este era necessariamente um constructo, congeminado por uma teia de conspiradores, os seus autores, que ainda para mais se contradizem entre si, dando dessa misteriosa personagem visões incompatíveis, díspares (v.g. os “Cristianismos” de Paulo, Pedro e João). Tudo para elevar a uma categoria de maravilhoso e divino um homem que fora apenas isto, um homem. Estas hipóteses, que constituem, como dissemos, o cerne do discurso académico dominante hoje e que se pretenderam frescas e novas, tornaram-se afinal velhas, pois não são inéditas (algumas já se faziam ouvir nos primeiros séculos de Cristianismo) e ganharam as cãs brancas da senilidade. Estes são os factos: especulação, falta de rigor, seriedade, preconceito (cf. Vittorio Mezori, um dos autores que cita por Manuel Rainho), parcialidade e abuso de grelhas exegéticas modernas para a leitura dos textos, da História, dos eventos. Acrítica e credulamente.
O livro de Manuel Rainho entra no coração dos debates. Lê muito do que havia para ler, mesmo contra a sua própria fé. E do esforço resulta este trabalho, que produziu como intelectual e cristão: se como cristão soube manter a sua fé alicerçada na rocha que é o seu autor e consumador, Jesus Cristo, como intelectual provou que crer e pensar são duas operações distintas da mente e espíritos humanos, mas que se complementam muito bem. Que próprio do ser cristão pode ser a seriedade de pensamento e investigação. Que os dados, os elementos disponíveis e a aplicação séria de metodologias de investigação e análise podem, afinal, dar sustento àquilo em que se crê. Entre os autores que cita (a bibliografia é vasta), um deles admite isso mesmo, a despeito do resto, do que falta — crer, coisa impensável. Não raro o problema está aí: esse salto para o crer é inadmissível para o crítico, o pensador, o homem e mulher de ciência. Mais uma vez, o preconceito, como se a adesão a uma hipótese não fosse em si mesma uma questão de crença (em grego, persuasão e crença têm o mesmo radical etimológico, e a crença é a adesão àquilo de que somos intelectual, emocional e espiritualmente persuadidos). E Manuel Rainho faz verdadeira apologética: não apenas uma defesa da fé, daquilo em que crê, mas um exercício de investigação e de raciocínio. E o resultado é de uma maior frescura do que a generalidade dos exercícios de apologética dos críticos — porque o são. Investiga a história e tem o cuidado de entrar em testemunhos exteriores aos bíblicos. E somos surpreendidos com a razoabilidade, a credibilidade dos testemunhos evangélicos, a vários níveis: geográfico, onomástico, histórico. Os próprios cristãos (evangélicos, designadamente), se em grande medida — é certo — não pensam nem investigam e temem o questionamento, vêem-se numa estrada de redescoberta de Jesus Cristo, de um novo entendimento do fenómeno, no seu contexto. Temos aqui uma Via media, de uma fé que pensa e de um pensamento que se atreve a crer. Honestamente.
A teoria da conspiração cristã (como lhe chamo) não subsiste. Não só porque, como a vejo, é tautológica, pois parece ter surgido ad hoc, sendo postulada para justificar uma determinada posição de fé e filosófica, e sem maiores bases de sustentação do que a própria crença na mesma. E por isso mesmo assente mais na fantasia dos seus proponentes. E tão insensata ela é que deixa por explicar a falta de coerência e harmonia absoluta em relatos de certos eventos das biografias de Jesus dos Evangelhos (sobretudo nos Sinópticos), pois toda a conspiração, para ser bem sucedida, terá de ser alicerçar numa concertação perfeita entre os conjurados. Além de deixar outras coisas por explicar. O Jesus judeu, que irrompeu na História num contexto histórico, étnico, espiritual e cultural judaico, foi divinizado desde muito cedo — os indícios apontam para aí. Porque ele próprio se identificou com a divindade desse povo, o IHWH. E não porque houve uma paganização (através da versão helenística do paganismo) das honras dadas à sua pessoa, mas porque a primeira geração de “cristãos” se compunha maioritariamente de judeus de origem, intrinsecamente Judeus, para quem as honras divinas a ser humano eram coisa impossível. Mesmo o Messias, essa personagem desejada, não passaria de mero homem, rei ou profeta excepcional representante de Deus, mas homem. Homens e mulheres marcados pelas palavras e por factos inéditos, de um tipo de novo. E como essas teses falham aqui, por muitas e mais díspares sejam as hipóteses explicativas alternativas, como as ondas contra rochas! Toda a experiência com Jesus marcou essa gente de tal modo (e ainda marca), um modo tão sem igual se comparado com o que se conhece da experiência com outros Messias (em particular Simão Bar Kochba, um século posterior a Jesus, aclamado pela generalidade dos Judeus da sua época como o verdadeiro Messias), a ponto de assumirem denodadamente a missão de pregar a palavra, a morte e ressurreição desse Jesus e aceitarem cruéis martírios em nome da veracidade do testemunho dessa experiência, que não havia forma de negar ou alterar, que outra explicação não é possível, senão a impensável: esse testemunho é digno de crédito, ou pelo menos esses homens e mulheres, no posse usufruto das suas faculdades, acreditavam no que diziam e viviam. Muitos homens e mulheres que ainda hoje sofrem martírio por um nada?
Se defeitos houver no livro, será talvez falta de profundidade em alguns pontos (u.g. a questão histórico-crítica). Mas isso terá como atenuante o facto de o livro abordar genericamente Jesus e as hipóteses sobre Jesus. Mas talvez seja defeito meu como leitor, pois gostaria de ver desenvolvidas outras questões pertinentes às hipóteses da História das origens do Cristianismo, cada uma das quais é subsidiária de uma ou outra das concepções existentes acerca da pessoa de Jesus. Como escreveu o Evangelista João (21:25): “Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, parece-me que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seria preciso escrever”. E muito haverá com efeito ainda por escrever sobre tantos destes assuntos, e cada merecia não poucos livros.
sábado, julho 23, 2011
CRUCIFICAÇÃO
“leaning forward against the thrust of the blades in the water, he began to row”Ernest Hemingway, The old man and the sea“debruçando-se contra a resistência das pás na água, começou a remar”(tradução de Jorge de Sena)
debruçado contra o impulso
em que a cabeça flui
separando-se do peito
aberto em demanda do ar
ainda o pássaro se prevê
no arco dos braços
ainda a lâmina não perfurou
a última resistência
da água no flanco
e já as mãos se debruçam
da coroa dos cravos
nesse recontro universal
que convoca o rosto húmido
e olvida os membros
lançados contra todo o corpo
o corpo que tudo desaprendeu
apenas sabe que o cortou o sangue
como os remos a água
23/07/11
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