domingo, outubro 28, 2012

UMA ROSA


À memória de Sophie Scholl
(1921-1943)


Nasceu uma rosa na Alemanha
nasceu branca, de um branco
que encandeou os olhos
dos que a colheram

nasceu íntegra numa madrugada
sábia, de uma sabedoria 
que perturbo os lábios 
dos que a segaram

não correu, como rosa que era voou
presa no caule, livre nas pétalas
com o vento por aliado, não há paredes
que retenham o aroma
Deus é o artista que lhe apura o perfume

precisava de uma rosa a Alemanha
branca, para lavar os olhos

Rui Miguel Duarte
26/10/12


SOPHIE SCHOLL

Excerto do filme Sophie Scholl - Die Letzte Tage (Os últimos dias), baseado em entrevistas a intervenientes e testemunhos escritos da época. A descoberta da história de uma jovem, 21 anos, estudante universitária em Munique, cristã protestante, que resistiu ao regime nazi, juntamente com seu irmão Hans e outros estudantes. Mulher de ímpares coragem, de clarividência social, ética e políticas. No interrogatório com o inspector Mohr, da Gestapo, fala de dignidade, decência, direitos humanos, da iniquidade do ódio racial, da sua fé em Deus, de uma outra Europa, a da paz e das ideias. Não temeu a morte. Julgada e guilhotinada em quatro dias a 22 de Fevereiro de 1943. 
Tivesse sobrevivido e teria assistido ao nascimento da Comunidade Europeia, e teria subscrito sem reserva os princípios inspiradores da mesma. Ela e os membros do movimento Weiße Rose (Rosa Branca) de Resistência (que actuava pela distribuição na Universidade e pelo correio de panfletos anti-nazis) são heróis nacionais na Alemanha. 
Tivesse vivido mais uns anos, seria resistente à nova Alemanha e à nova União Europeia, da opressão económico-financeira de ricos sobre pobres, de países do Norte sobre países do Sul. Em nome do dinheiro para alguns.

quinta-feira, outubro 25, 2012

CAMÕES E A TENÇA


“Este país te mata lentamente.”
Sophia de Mello Breyner Andresen, “Camões e a tença”

Irás aos Paços, Camões, pedir a tença
— disseram-te e tu acreditaste
são tantas as palavras
que se dizem hoje que amanhã se desdizem
e depois há sempre quem diz tudo
e mais alguma coisa
sem saber o que dizer, simplesmente diz
pois quando te disseram, Camões,
irás aos Paços pedir a tença
deverias ter entendido de outra forma,
Camões,
ou não fosses poeta, os poetas
têm sempre múltiplo entendimento

eis o que deverias ter entendido:
irão os Paços a ti, Camões, hoje,
pedir-te a tença que te deram ontem
e amanhã voltarão os Paços a ti
pedir-te a tença que te dão hoje
para que queres mais? aos Paços não sobejam
as tenças, cada moeda de cuja carga te aliviarem
é uma asa mais que te dão, pois és poeta,
e os poetas só precisam de fogo
que arde e se não vê,
de mares nunca dantes navegados
e de buscar mais Taprobanas
e aos Paços não sobejam as tenças
pois enormes são os passos perdidos e achados
dos Paços, tantas as alcovas,
câmaras e antecâmaras dos Paços,
Camões

este país te mata lentamente, Camões,
és poeta
e os poetas morrem devagar
e o povo que oiça os poetas, devagar,
na passagem do vento
pelo ventre vazios, mas de corações
cheios dos teus poemas
Camões, e dos dos outros poetas
sim, Camões, lentamente,
tença alguma paga os teus poemas, Camões,
somente a lentidão da morte é preço suficiente
até à escansão do último verso,
aquele que ficou branco e em branco…

irão os Paços a ti, Camões, pedir-te a tença,
e se a tença já não tiveres,
se já a tiveres gastado
ou perdido na pena do voar,
pedir-te-ão a camisa, as calças,
e se camisa e calças já não tiveres
pedir-te-ão o pão, pois de pão não vive
um poeta, mas de todos os versos
que provêm da sua boca
este é o desconcerto do mundo,
mas o poeta
tem sempre o coração no alto, e a boca
nas longínquas Índias

e por fim se nada mais houver
até os teus versos
te levarão, Camões, porque te preocupas?
com eles farão uma bela edição póstuma
e um belo dia, num momento especial
citá-los-ão comovidos
e chorarão de saudades tuas, e dirão
que esses versos foram proféticos,
que falavam desses bravos e mostrengos
que os Paços e este país atravessam,
mas com os Paços ao leme, com os reis
no comando do batalhão
não haverá fome que não dê em fartura,
Camões

lentamente te mata, Camões, este país,
porque te preocupas?
entrega a tença, sê magnânimo,
em breve findará a tença
deixará também de haver país
que te mate, e sem país que te mate,
como morrerás, Camões?
porque te preocupas?
se Deus quiser, também se perderão
os Paços e as suas penas
e as suas tenças

Rui Miguel Duarte
24/10/12

quinta-feira, outubro 18, 2012

ICHI


“Nunca sei o que corto
o meu olhar ausentou-se de mim”
(do filme Ichi, de Fumihiko Sori, 2008)

o meu olhar está ausente de mim
perdeu-se na neve

nunca sei se é dia ou noite
se quem vem é amigo ou se vem
para me estuprar, ausentou-se
e deixou a sombra na ponta do sabre
que ao atravessar o ar
corta a escuridão no sangue
de quem me afronta,
cada golpe é mais uma ave que sibila
de morte,

nunca sei o que corto, eu só quero
dissecar a treva, encontrar quem me dispôs
a vara em que me apoio nesta estrada, que me deixem
de novo ouvir a voz que me trouxe a vida
até esta beira de abismo, que me deixem ver-lhe
os olhos com os meus, trocar a sua cegueira
pela minha, dançar nos volteios finos do sabre
uma vez e sempre, quem é ele, meu pai?

Rui Miguel Duarte
17/10/12

segunda-feira, outubro 15, 2012

O PÃO


τν ρτον μν τν πιούσιον δς μν σήμερον
“o pão que provê à nossa subsistência dá-nos hoje”
Evangelho Segundo Mateus 6:11

O pão desce sobre a substância
diária pela neblina fresca desliza
suspendendo o deserto que cresce
em que habitamos
este é o pão, tome o lugar
sobre a mesa antes de o sol nascer
e pouse sobre a essência da fome
dá-no-lo da tua mão
que criou o dia de hoje
dá-no-lo quente e a estalar a côdea dura
das nossas bocas

15/10/12

sábado, outubro 13, 2012

A febre de fiscalite do actual governo

A sanha fiscal do actual governo não conhece limites. Na proposta de Orçamento de Estado para 2013, agora, até a criação artística passa a ser taxada: os rendimentos da propriedade intelectual a título individual, vulgo direitos de autor, de escritores, cientistas e artistas, deixam de ser isentos de IVA para passar a pagá-lo. Ainda bem: essa gente ganha rios de dinheiro e nada acrescentam ao país. São uns retintos parasitas. 
Se não querem pagar, emigrem! Ou então façam como eu: os livros de poesia que publiquei ainda me deram prejuízo.