O MISTERIOSO JESUS
“Mas vós, quem dizeis que eu sou?” Marcos 8:29
Estas palavras deram o mote e título ao livro primeiro livro de Manuel Rainho, embrião do presente O misterioso Jesus. E através delas aquele mesmo que as pronunciou deixava já entrever os questionamentos, apreensões, adesões e recusas que o seu nome, a sua pessoa e a sua mera existência suscitariam ao longo de séculos, e ainda hoje, não deixaram de suscitar.
Jesus histórico versus Jesus da fé, Jesus mentiroso ou louco, o Jesus humano e divino, o judeu, o pagão e o místico, as lendas dos milagres, os mitos do nascimento e da ressurreição, a conspiração cristã de divinização de Jesus como o Cristo — variações em torno do questionamento, que começaram a tomar forma e substância com o Iluminismo e Racionalismo, e com a reivindicação que estes fizeram de arautos da liberdade de pensamento em relação ao dogma religioso, até hoje. Mas que nada — ou pouco — trouxeram para a tribuna dos debates, antes reavivaram e rem reavivado vetustos questionamentos.
Com efeito, gerou-se a ideia de que os cristãos eram/são acríticos e crédulos. O seu discurso e pensamento feridos de religiosidade e dogmatismo. Um novo paradigma de pensamento, livre, crítico, inquiridor, racionalista e científico impôs-se. Todavia, ao dogma substituiu-se outro dogma — mais acrítico do que aquele que combatia. À religião e crença cristã substituiu-se outra, mais religiosa ainda — com mais liturgias e credos do que aquele que combatia, em nome do ateísmo. Ao factor Deus substituiu-se o não-Deus. E este paradigma tem dominado a intelectualidade de tal modo que ser intelectual se tornou sinónimo de agnóstico, ateu e anti-cristão. Estes são os factos.
Manuel Rainho permitiu-se que o questionamento se fizesse na sua alma e na sua mente. E sorveu até ao fim todos os cálices de teorias, hipóteses e teses. E cuidadosamente as lê, procura compreender, analisar e, como intelectual livre e responsável, submeter a escrutínio. Sim, porque não há teses que se não possam sujeitar a escrutínio. Se as teses cristãs o foram, não poderiam jamais os proponentes das histórico-críticas, e outras, escapar a essa necessidade e condição. Erigiram um monumento tautológico, cujas proposições se sustentam em premissas que são as próprias conclusões. E essas conclusões, tomadas pois antes mesmo da investigação da sustentabilidade das hipóteses propostas, partem as mais das vezes de preconceitos, pré-juízos anti-cristãos, naturalistas, de pressupostos filosóficos ateus, do “não-Deus” e, pior ainda, de puras especulações e exercícios de imaginação. Tudo é possível e crível, menos o testemunho acerca de Jesus Cristo transmitido pelo Novo Testamento. Este era necessariamente um constructo, congeminado por uma teia de conspiradores, os seus autores, que ainda para mais se contradizem entre si, dando dessa misteriosa personagem visões incompatíveis, díspares (v.g. os “Cristianismos” de Paulo, Pedro e João). Tudo para elevar a uma categoria de maravilhoso e divino um homem que fora apenas isto, um homem. Estas hipóteses, que constituem, como dissemos, o cerne do discurso académico dominante hoje e que se pretenderam frescas e novas, tornaram-se afinal velhas, pois não são inéditas (algumas já se faziam ouvir nos primeiros séculos de Cristianismo) e ganharam as cãs brancas da senilidade. Estes são os factos: especulação, falta de rigor, seriedade, preconceito (cf. Vittorio Mezori, um dos autores que cita por Manuel Rainho), parcialidade e abuso de grelhas exegéticas modernas para a leitura dos textos, da História, dos eventos. Acrítica e credulamente.
O livro de Manuel Rainho entra no coração dos debates. Lê muito do que havia para ler, mesmo contra a sua própria fé. E do esforço resulta este trabalho, que produziu como intelectual e cristão: se como cristão soube manter a sua fé alicerçada na rocha que é o seu autor e consumador, Jesus Cristo, como intelectual provou que crer e pensar são duas operações distintas da mente e espíritos humanos, mas que se complementam muito bem. Que próprio do ser cristão pode ser a seriedade de pensamento e investigação. Que os dados, os elementos disponíveis e a aplicação séria de metodologias de investigação e análise podem, afinal, dar sustento àquilo em que se crê. Entre os autores que cita (a bibliografia é vasta), um deles admite isso mesmo, a despeito do resto, do que falta — crer, coisa impensável. Não raro o problema está aí: esse salto para o crer é inadmissível para o crítico, o pensador, o homem e mulher de ciência. Mais uma vez, o preconceito, como se a adesão a uma hipótese não fosse em si mesma uma questão de crença (em grego, persuasão e crença têm o mesmo radical etimológico, e a crença é a adesão àquilo de que somos intelectual, emocional e espiritualmente persuadidos). E Manuel Rainho faz verdadeira apologética: não apenas uma defesa da fé, daquilo em que crê, mas um exercício de investigação e de raciocínio. E o resultado é de uma maior frescura do que a generalidade dos exercícios de apologética dos críticos — porque o são. Investiga a história e tem o cuidado de entrar em testemunhos exteriores aos bíblicos. E somos surpreendidos com a razoabilidade, a credibilidade dos testemunhos evangélicos, a vários níveis: geográfico, onomástico, histórico. Os próprios cristãos (evangélicos, designadamente), se em grande medida — é certo — não pensam nem investigam e temem o questionamento, vêem-se numa estrada de redescoberta de Jesus Cristo, de um novo entendimento do fenómeno, no seu contexto. Temos aqui uma Via media, de uma fé que pensa e de um pensamento que se atreve a crer. Honestamente.
A teoria da conspiração cristã (como lhe chamo) não subsiste. Não só porque, como a vejo, é tautológica, pois parece ter surgido ad hoc, sendo postulada para justificar uma determinada posição de fé e filosófica, e sem maiores bases de sustentação do que a própria crença na mesma. E por isso mesmo assente mais na fantasia dos seus proponentes. E tão insensata ela é que deixa por explicar a falta de coerência e harmonia absoluta em relatos de certos eventos das biografias de Jesus dos Evangelhos (sobretudo nos Sinópticos), pois toda a conspiração, para ser bem sucedida, terá de ser alicerçar numa concertação perfeita entre os conjurados. Além de deixar outras coisas por explicar. O Jesus judeu, que irrompeu na História num contexto histórico, étnico, espiritual e cultural judaico, foi divinizado desde muito cedo — os indícios apontam para aí. Porque ele próprio se identificou com a divindade desse povo, o IHWH. E não porque houve uma paganização (através da versão helenística do paganismo) das honras dadas à sua pessoa, mas porque a primeira geração de “cristãos” se compunha maioritariamente de judeus de origem, intrinsecamente Judeus, para quem as honras divinas a ser humano eram coisa impossível. Mesmo o Messias, essa personagem desejada, não passaria de mero homem, rei ou profeta excepcional representante de Deus, mas homem. Homens e mulheres marcados pelas palavras e por factos inéditos, de um tipo de novo. E como essas teses falham aqui, por muitas e mais díspares sejam as hipóteses explicativas alternativas, como as ondas contra rochas! Toda a experiência com Jesus marcou essa gente de tal modo (e ainda marca), um modo tão sem igual se comparado com o que se conhece da experiência com outros Messias (em particular Simão Bar Kochba, um século posterior a Jesus, aclamado pela generalidade dos Judeus da sua época como o verdadeiro Messias), a ponto de assumirem denodadamente a missão de pregar a palavra, a morte e ressurreição desse Jesus e aceitarem cruéis martírios em nome da veracidade do testemunho dessa experiência, que não havia forma de negar ou alterar, que outra explicação não é possível, senão a impensável: esse testemunho é digno de crédito, ou pelo menos esses homens e mulheres, no posse usufruto das suas faculdades, acreditavam no que diziam e viviam. Muitos homens e mulheres que ainda hoje sofrem martírio por um nada?
Se defeitos houver no livro, será talvez falta de profundidade em alguns pontos (u.g. a questão histórico-crítica). Mas isso terá como atenuante o facto de o livro abordar genericamente Jesus e as hipóteses sobre Jesus. Mas talvez seja defeito meu como leitor, pois gostaria de ver desenvolvidas outras questões pertinentes às hipóteses da História das origens do Cristianismo, cada uma das quais é subsidiária de uma ou outra das concepções existentes acerca da pessoa de Jesus. Como escreveu o Evangelista João (21:25): “Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, parece-me que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seria preciso escrever”. E muito haverá com efeito ainda por escrever sobre tantos destes assuntos, e cada merecia não poucos livros.
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