sábado, dezembro 26, 2009

PALAVRA PROFÉTICA

Mas diante da igreja, antes quero dizer cinco palavras tiradas da minha cabeça, mas que os outros possam aproveitar, do que milhares de palavras em línguas desconhecidas.” 1 Cor 14,19 (versão A Bíblia para todos p. 2246)

Há um baú de tesouro
repleto e palpitante de mistérios
inefáveis depositados por Deus,
como a terra úbere de minérios,

os próprios anjos dele se surpreendem
reclinados na indagação
de novo vento que lhes enfune as asas
e nos lábios lhes cante nova canção

não é de madeira preciosa
nem engastado de diamante
é dotado de riso e choro
de canto doce e troante

esse tesouro é a mente
incendiada e tenra do profeta
apurada para a interpretação de Deus
trasladada em voz de pastor, rei ou poeta

desse tesouro não retira o profeta
um gemido em estado bruto inexprimível
em língua celeste inaudita
mas palavra de homem inteligível

ao tempo e ao entendimento da assembleia
conforto coragem leme e lema para o povo
assim dita e pronunciada é como na árvore
nascente a pujança de um renovo

20/12/09

Publicado ineditamente em Papéis na Gaveta

quarta-feira, dezembro 23, 2009

NEVE


Passa na rua

um leopardo malhado

as patas macias marcam a cadência do silêncio


o sol arrefeceu

quando as nuvens irromperam

em beijos

à terra


Passa na rua

um leopardo das neves

o bafo frio gelando o ar


a cauda semeia o branco

na rua sobre as árvores e às portas


o olho perde a íris

e todo é esclera


21/12/09

segunda-feira, dezembro 21, 2009

MANJEDOURA


“Nasceu-lhe então o menino, que era o seu primeiro filho. Envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não conseguirem arranjar lugar na casa.” (Lucas 2,10 versão A Bíblia para todos, p. 2047)

Não havia uma bacia de água
onde a jovem parturiente
amaciasse os pés
crespos da caminhada

Não havia leito
onde alongasse as pernas
das horas moldadas
ao dorso do jumento

Não havia travesseiro
em que desatasse a dor
jugulada do parto

Não havia linho fino
para cingir os membros tenros
do primeiro filho
Não havia o anteparo
de um berço de ouro

Apenas havia umas faixas
uma tiras de pano de saco rasgadas
apenas sobrava uma manjedoura
para hospedar a noite de feno
do pequeno corpo amarantino

Num estábulo
na ponta mais longe da estrada
aí onde os animais
consolam as bocas
foi disposto o pão vivo do céu


Rui Miguel Duarte
15/12/09

quarta-feira, dezembro 16, 2009

O TROTE

O tenro corpo
firmado na sela
Uma pequena mão adestrando pela rédea
o minúsculo grão de ar
da apreensão e do espanto

A outra mão não se retém
de pousar uma festinha
no enriçado da crina

E a menina trota
trota o pónei
gentil

A vozinha canta uma ordem
e o pachorrento bojo da montada
desliza sobre os cascos
num chão de seda

E a menina trota
trota o pónei
suave

Nesse trote que podia
tornar-se galope
embrenhar florestas e rasar planícies
contornar vales e transpor penhascos
ou riscar uma nuvem no espaço
mas que trota e risca apenas
a abóbada do nosso olhar

11/12/09

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Joanyr de Oliveira

Faleceu o poeta e pastor Joanyr de Oliveira.
Fica o mundo mais pobre de um servo de Deus e a cultura lusófona de um celebrado poeta e escritor. Ver aqui.

domingo, dezembro 06, 2009

Poética rósea

"Poesia é também olhar uma rosa até que nossos olhos pulverizem os espinhos." (João Tomaz Parreira)

Até pulverizar os espinhos
da rosa
à força de olhar
até que só reste deles
a raíz cortada
até ao branco
até à nua
altivez do caule

até deixar marcas
nas folhas
com a ponta da faca
dos dedos

aninhar-se na carne ígnea
das pétalas
imbricar-se nas suas volutas
até descer
ao fundo da campânula
tacteante nas patas das abelhas
até esmiuçar os estames
e até à nervura
beber o pólen

até a boca cheia
de açúcar
estar pronta
a conquistar o ar

29/11/09

Poética zoológica

O poema é um animal

Feroz como um urso faminto
de beleza matizada e elegante
como um leopardo
por vezes ouve-se-lhe o rugido de leão
a grande distância, impondo respeito

Ora é um gato, de provada agilidade
caindo sempre de pé
e revivendo sete vezes
no ouvido,
ora é um pássaro
que não comanda as próprias asas
não resistindo a abri-las
e a demandar os ares

Outras vezes, mais circunspecto,
apetecem-lhe
as profundidades,
as cores e formas
e tesouros perdidos
de afundados galeões
que só o mar oferece
e é um peixe,
outras é uma cobra
arrastando-se pela terra
demorada e silenciosa,
ou um coiote no deserto,
de nariz ao rés do chão
em busca de alimento

Um coelho,
que em qualquer vão de rocha faz a toca,
um pequeno lagarto,
que penetra nos palácio do rei

Como a baleia cruza todos os oceanos
como o albatroz sobrevoa todos os meridianos
como a andorinha sempre retorna ao seu ninho

O poema,
mesmo quando os demais
animais dormem,
abre os olhos
é então a plácida coruja
a vigia dos sonhos

27/11/09

No sonho


Queria ver-te os olhos, minha filha,
mas escondeste-os de mim

Entraste num navio
ou numa nave espacial
bateste as asas
para onde
só tu podes ir

sonhas, minha filha?
com que sonhas tu?

não se vê sobressalto em ti
a placidez da pela da tua fronte
é um rio de trigo maduro
o teu respirar
os dedos do vento que tangem velas
os teus cabelos
os canais e afluentes de navegação de alto mar

não me queres levar
na cabina de pilotagem
ou no cesto da gávea?
levar-me a montar um cometa em pleno voo?
a encalhar num atol de coral?
se te fizeres amiga de um duende de jardim
pedes-lhe dois malmequeres,
um para mim e outro para a mamã?

é melhor que eu me cale
e te deixe só com o teu soninho
tens todo o teu sonho para percorrer
ao acordares terás para cantar
altissonantes epopeias
e maviosos poemas

5/12/09