sexta-feira, setembro 15, 2006

As entranhas em brasa 2: do micro-ondas ou fresco?

Um dia, lia este passo do Evangelho de Lucas (Luc 24:13-35) e detive-me a meditar no comentário desses dois homens: enquanto ouviam Jesus, mesmo não o tendo reconhecido no momento, o coração ardia-se-lhe no peito. Um misto de provocação, estímulo, entusiasmo, motivação, nova excitação emocional e intelectual provocada por algo que lhes era caro. Essa mensagem que introduzira vida nas suas almas era de novo ouvida, e causava o mesmo impacto. O coração e a alma desses homens estava pois ainda disponível, como músculo em carne viva, para serem percutidos pelo martelo da Palavra provinda da boca de Deus.
Apliquei essa meditação à minha própria vida. Sim, o meu coração deve arder ao ouvir a Palavra de Deus: essa era a lição. No encontro na estrada de Emaús, os acontecimentos de Jerusalém eram recentes. Talvez isso explique a sensibilidade emocional dos discípulos. Quando, como esses dois homens, me foi comunicada a notícia da morte e ressurreição de Jesus em meu favor e me dispus a dar a esse facto a devida importância, quando busquei nela a mensagem que pudesse mudar a minha vida, também o meu coração ardia. Nos primeiros meses, um ou dois anos, o meu coração ardia. Motivava-me ouvir, ler, aprender e discutir as Escrituras. Eram a minha paixão. Mudaram a minha vida.
E com o passar do tempo? Quando os acontecimentos que constituem o âmago do Evangelho — morte e ressurreição de Jesus — ficam mais distantes temporalmente? Não só isto, mas até mais distantes do coração, da alma, das emoções, dos interesses e prioridades pessoais? Porque já lemos tantas e tantas vezes as mesmas passagens e as histórias, lhes sabemos o fim e passamos obliquamente pelos pormenores das narrativas? Porque já conhecemos de cor e salteado as declarações doutrinárias e as promessas da Palavra de Deus, consideramos adquirido, quando não perdido, o que umas dizem e as outras prometem? Quem não já experimentou comer comida aquecida no micro-ondas, em vez de fresco maná quotidiano? Eu me confesso.
No deserto do Sinai, Deus alimentou o povo com uma ração diária de maná. Guardá-lo para o dia seguinte provou-se loucura, pois apodreceu e criou vermes! Esse maná era uma prefiguração do verdadeiro pão vivo descido do céu, Jesus. E se os Israelitas deviam ingerir uma ração diária, do mesmo modo precisamos diariamente do alimento que é Jesus, a sua Palavra e a sua presença. Mas não apenas isso: a lição que aprendi foi que, se devoramos diariamente esse bom alimento como se fosse novo, a nossa fome deve também ser nova. Nova a nossa antecipação. Nova a consciência da nossa necessidade. Todos os dias. É tempo de mudar a nossa atitude íntima, a nossa disposição relativamente à presença e à Palavra de Deus. De nos voltarmos a espantar, de nos deixarmos deslumbrar, de ficarmos boquiabertos e soltar diariamente um “Aaahhh!” de admiração pela constante surpresa e maravilha que são Deus, a sua Palavra, os seus planos, as suas promessas e as suas acções. De pensar que, quando julgamos já conhecer, então é que precisamos de verdadeiramente conhecer. De ter o coração em brasa, a alma em carne viva para receber de novo o Evangelho que nos confronto e nos corrige, mas igualmente nos consola e nos salva. Ou não dependemos do seu favor, mas da nossa experiência de vida cristã ou da maturidade e conhecimento alcançados. E entramos no terreno pecaminoso da presunção.
O apóstolo percebeu isto. Por isso escreveu, aos Filipenses, que deixara de pensar que poderia possuir algum motivo de satisfação e de basear o seu crescimento como indivíduo na sua própria maturidade, conhecimento ou experiência. Provara da excelência de vida que Cristo é, e deste modo percebeu como em si mesmo era incompleto e estava ainda em contínuo processo de amadurecimento. Por isso prosseguia, tendo Cristo como referência, fonte e alvo. Todos os dias.

Dispus-me, desde então, a tornar à Palavra de Deus como se ainda estivesse no início da caminhada cristã, como quem ainda está a aprender as letras.