quinta-feira, dezembro 27, 2012

OS PASTORES DE BELÉM

“…Vamos beijar os pés nus
do que semeia nos céus …
Gomes Leal, “Os Pastores”

traziam cajados e liras afiadas
nos fins de tarde
conheciam a música as rugas do campo
conheciam como o sol e as estrelas
se sucediam nas horas
e faziam sombra nos cajados
esta era a música que dedilhavam:
o som branco
tinindo na lã

na voz dos anjos uma canção nova,
um salmo ao que semeia nos céus
e cujos pés nus
acabaram de ser
colhidos da terra

Rui Miguel Duarte
27/12/12

quarta-feira, dezembro 12, 2012

UM CAFÉ À BEIRA-MAR

Marcámos encontro 
sobre um café paradoxal
trago comigo o teu olhar 
que empresto ao farol 
cuja torre tudo sobrepuja
com ela crescemos até atingir o mar 
mas nunca o céu
este está reservado ao olhar do farol
aonde o teu olhar, com a largura do mar,
é capaz de subir

marcámos a hora num riso de areia
e aí fizemos castelos
conquistados pelos dedos 
da criança,
a criança que bebemos na chávena 

no farol há um pouco de nós
há tudo de nós
somos aqueles que seccionam o horizonte
e o esparge no vapor
somos aqueles que se elevam
nessa respiração quente
quando a maresia tudo já de nós cativou

é na fina espuma que somos 
toda a praia e o vento
quanto decidimos ser
e o café à beira-mar não é
paradoxal 

Rui Miguel Duarte
9/12/12

sexta-feira, novembro 30, 2012

DOS POETAS

a arte dos poetas é marcada 
de plenos acentos:
esdrúxulo é o seu canto 
grave a alma
aguda a língua

o coração dos poetas é inundado
de todos os sangues: do fecundo
dos que tombam nas batalhas,
do turvo dos condenados,
do sem nome dos que foram
retirados por um golpe sem mão
e que ao resvalar pelas ruas
cria a penumbra,
do seu próprio sangue

a pele dos poetas é agitada
de eriçados ventos:
à voz projectada do voo da ave
do assobio que o jovem dirige
à bela menina quando ela passa
como nuvem que uma brisa,
ao moldar-lhe a anatomia, ela própria freme,
aos uivos da noite dançando
pelos espaços deslaçados pelos rios

a boca dos poetas esparge
no peito dos que os ouvem
o perfume e a lágrima,
abri-la e fechá-la
é a expansão do céu e da terra

Rui Miguel Duarte
27/11/12

domingo, outubro 28, 2012

UMA ROSA


À memória de Sophie Scholl
(1921-1943)


Nasceu uma rosa na Alemanha
nasceu branca, de um branco
que encandeou os olhos
dos que a colheram

nasceu íntegra numa madrugada
sábia, de uma sabedoria 
que perturbo os lábios 
dos que a segaram

não correu, como rosa que era voou
presa no caule, livre nas pétalas
com o vento por aliado, não há paredes
que retenham o aroma
Deus é o artista que lhe apura o perfume

precisava de uma rosa a Alemanha
branca, para lavar os olhos

Rui Miguel Duarte
26/10/12


SOPHIE SCHOLL

Excerto do filme Sophie Scholl - Die Letzte Tage (Os últimos dias), baseado em entrevistas a intervenientes e testemunhos escritos da época. A descoberta da história de uma jovem, 21 anos, estudante universitária em Munique, cristã protestante, que resistiu ao regime nazi, juntamente com seu irmão Hans e outros estudantes. Mulher de ímpares coragem, de clarividência social, ética e políticas. No interrogatório com o inspector Mohr, da Gestapo, fala de dignidade, decência, direitos humanos, da iniquidade do ódio racial, da sua fé em Deus, de uma outra Europa, a da paz e das ideias. Não temeu a morte. Julgada e guilhotinada em quatro dias a 22 de Fevereiro de 1943. 
Tivesse sobrevivido e teria assistido ao nascimento da Comunidade Europeia, e teria subscrito sem reserva os princípios inspiradores da mesma. Ela e os membros do movimento Weiße Rose (Rosa Branca) de Resistência (que actuava pela distribuição na Universidade e pelo correio de panfletos anti-nazis) são heróis nacionais na Alemanha. 
Tivesse vivido mais uns anos, seria resistente à nova Alemanha e à nova União Europeia, da opressão económico-financeira de ricos sobre pobres, de países do Norte sobre países do Sul. Em nome do dinheiro para alguns.

quinta-feira, outubro 25, 2012

CAMÕES E A TENÇA


“Este país te mata lentamente.”
Sophia de Mello Breyner Andresen, “Camões e a tença”

Irás aos Paços, Camões, pedir a tença
— disseram-te e tu acreditaste
são tantas as palavras
que se dizem hoje que amanhã se desdizem
e depois há sempre quem diz tudo
e mais alguma coisa
sem saber o que dizer, simplesmente diz
pois quando te disseram, Camões,
irás aos Paços pedir a tença
deverias ter entendido de outra forma,
Camões,
ou não fosses poeta, os poetas
têm sempre múltiplo entendimento

eis o que deverias ter entendido:
irão os Paços a ti, Camões, hoje,
pedir-te a tença que te deram ontem
e amanhã voltarão os Paços a ti
pedir-te a tença que te dão hoje
para que queres mais? aos Paços não sobejam
as tenças, cada moeda de cuja carga te aliviarem
é uma asa mais que te dão, pois és poeta,
e os poetas só precisam de fogo
que arde e se não vê,
de mares nunca dantes navegados
e de buscar mais Taprobanas
e aos Paços não sobejam as tenças
pois enormes são os passos perdidos e achados
dos Paços, tantas as alcovas,
câmaras e antecâmaras dos Paços,
Camões

este país te mata lentamente, Camões,
és poeta
e os poetas morrem devagar
e o povo que oiça os poetas, devagar,
na passagem do vento
pelo ventre vazios, mas de corações
cheios dos teus poemas
Camões, e dos dos outros poetas
sim, Camões, lentamente,
tença alguma paga os teus poemas, Camões,
somente a lentidão da morte é preço suficiente
até à escansão do último verso,
aquele que ficou branco e em branco…

irão os Paços a ti, Camões, pedir-te a tença,
e se a tença já não tiveres,
se já a tiveres gastado
ou perdido na pena do voar,
pedir-te-ão a camisa, as calças,
e se camisa e calças já não tiveres
pedir-te-ão o pão, pois de pão não vive
um poeta, mas de todos os versos
que provêm da sua boca
este é o desconcerto do mundo,
mas o poeta
tem sempre o coração no alto, e a boca
nas longínquas Índias

e por fim se nada mais houver
até os teus versos
te levarão, Camões, porque te preocupas?
com eles farão uma bela edição póstuma
e um belo dia, num momento especial
citá-los-ão comovidos
e chorarão de saudades tuas, e dirão
que esses versos foram proféticos,
que falavam desses bravos e mostrengos
que os Paços e este país atravessam,
mas com os Paços ao leme, com os reis
no comando do batalhão
não haverá fome que não dê em fartura,
Camões

lentamente te mata, Camões, este país,
porque te preocupas?
entrega a tença, sê magnânimo,
em breve findará a tença
deixará também de haver país
que te mate, e sem país que te mate,
como morrerás, Camões?
porque te preocupas?
se Deus quiser, também se perderão
os Paços e as suas penas
e as suas tenças

Rui Miguel Duarte
24/10/12

quinta-feira, outubro 18, 2012

ICHI


“Nunca sei o que corto
o meu olhar ausentou-se de mim”
(do filme Ichi, de Fumihiko Sori, 2008)

o meu olhar está ausente de mim
perdeu-se na neve

nunca sei se é dia ou noite
se quem vem é amigo ou se vem
para me estuprar, ausentou-se
e deixou a sombra na ponta do sabre
que ao atravessar o ar
corta a escuridão no sangue
de quem me afronta,
cada golpe é mais uma ave que sibila
de morte,

nunca sei o que corto, eu só quero
dissecar a treva, encontrar quem me dispôs
a vara em que me apoio nesta estrada, que me deixem
de novo ouvir a voz que me trouxe a vida
até esta beira de abismo, que me deixem ver-lhe
os olhos com os meus, trocar a sua cegueira
pela minha, dançar nos volteios finos do sabre
uma vez e sempre, quem é ele, meu pai?

Rui Miguel Duarte
17/10/12

segunda-feira, outubro 15, 2012

O PÃO


τν ρτον μν τν πιούσιον δς μν σήμερον
“o pão que provê à nossa subsistência dá-nos hoje”
Evangelho Segundo Mateus 6:11

O pão desce sobre a substância
diária pela neblina fresca desliza
suspendendo o deserto que cresce
em que habitamos
este é o pão, tome o lugar
sobre a mesa antes de o sol nascer
e pouse sobre a essência da fome
dá-no-lo da tua mão
que criou o dia de hoje
dá-no-lo quente e a estalar a côdea dura
das nossas bocas

15/10/12

sábado, outubro 13, 2012

A febre de fiscalite do actual governo

A sanha fiscal do actual governo não conhece limites. Na proposta de Orçamento de Estado para 2013, agora, até a criação artística passa a ser taxada: os rendimentos da propriedade intelectual a título individual, vulgo direitos de autor, de escritores, cientistas e artistas, deixam de ser isentos de IVA para passar a pagá-lo. Ainda bem: essa gente ganha rios de dinheiro e nada acrescentam ao país. São uns retintos parasitas. 
Se não querem pagar, emigrem! Ou então façam como eu: os livros de poesia que publiquei ainda me deram prejuízo. 

sábado, setembro 29, 2012

A recepção da recessão

Do Público de hoje:

São duas as ordens de razões com que os defensores Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) sustentam a sua causa: (1) o critério fonético - escrever como se pronuncia, sendo que a escrita deverá ser o testemunho, tão fiel quanto possível, da pronúncia ("Nota explicativa" [NE] n.º 3 apensa ao AO90). (2) a unificação da grafia numa língua que se pretende de comunicação internacional, pelo facto de ter dois padrões escritos (cf. os dois parágrafos finais da NE n.º 2). Concomitantemente, é costume porem em questão o argumento da etimologia, alcunhando-a de "falácia". E citarem a autoridade de um linguista como António Emiliano, da Universidade Nova de Lisboa, conhecido opositor ao AO90, e as suas reservas no tocante a tal argumentação. No meu artigo "As razões das raízes", publicado nas páginas deste jornal no passado 17 de Agosto, reconheci, sem reservas, "que a etimologia sofreu desde a reforma de 1911 diversos ataques que a fizeram recuar, com privilégio da aproximação à fonética, afinal o argumento mais utilizado pelos paladinos do AO90". Com efeito, muitas e complementares podem ser as razões contra o AO, embora possam umas na actual conjuntura ter mais peso do que outras. Considero a actual norma, de 1945, uma base de trabalho suficientemente aceitável; e, como classicista, assumo a causa da memória etimológica ainda restante como uma reserva... "ecológica". Devemos até lembrar-nos de que antes de a representação se reportar ao significante fónico, os sistemas gráficos primevos constituíam a tentativa de representar ideias. Defendi que a palavra escrita, mais do que um meio, é também objecto de pensamento e reflexão, ela é o mistério a perscrutar. 

Hic et nunc, porém, é no tocante a estas razões fundantes da defesa do AO90 que pretendo aportar alguns pontos para sede de reflexão. Em primeiro lugar, contrastivamente, é o próprio AO90 que justifica a manutenção do h inicial, a única consoante verdadeiramente muda e desempregada do nosso alfabeto, "por força da etimologia" (Base II 1.º a), violando o princípio fonético! Dito de outro modo: o AO90 marca um golo na baliza adversária e no lance seguinte marca outro, na própria.

Por outro lado, quis testar a percepção dos nossos confrades de língua em relação à nova grafia na sua versão-PT. Entendi ser essa percepção essencial para a análise científica do AO90, da sua coerência interna e para aferir se efectivamente cumpre os objectivos a que se propõe, e que foram enunciados supra, e se aquilo que diziam e dizem os opositores, alguns linguistas, sobre uma alegada mudança nos modos de pronúncia, não passa de uma "teimosia lusitana" (como é designada na NE n.º 4 d), ou pelo contrário, de razoáveis advertências. O AO90, como é consabido, ao mesmo tempo que pretende unificar, por exemplo, ótimoatoatordireçãosetor, admite duplas grafias, as famosas facultatividades (por ex. sector/setorcarácter/caráter), podendo ascender até às quatro formas correctas de escrever o mesmo vocábulo, como demostrou precisamente A. Emiliano; e fez ainda mais: provocou dissensão, desunificação gráfica, ao prescrever as variantes receção pt / recepção br; conceção pt / concepção br; deceção pt / decepção br; perceção pt / percepção br; espetador pt /espectador br. Segundo autogolo. Ora, há chamadas "consoantes mudas etimológicas" com valor diacrítico (cf. o artigo "A razão das raízes") no português euro-afro-asiático, por manterem a abertura da vogal átona precedente (contrariamente à tendência comum de fechamento). A intuição, relativamente à grafia-PT receção (recorde-se que no Brasil o p é efectivamente pronunciado e escrito) é que a sua pronúncia se tornaria homófona da de recessão. Para tanto perguntei a cidadãos brasileiros residentes em Portugal como pronunciariam a grafia receção. A resposta: pensaram tratar-se derecessão, esse problema que está a afectar Portugal. Ganhava substância a razoabilidade das objecções dos críticos do AO. Em diálogo que mantive com um bloguista brasileiro, residente no seu país, a propósito de um texto de sua autoria, em que se opõe ao AO90 (http://blogdomaximus.com/2012/08/23/o-acordo-ortografico-da-lingua-portuguesa/), confrontei-o com as grafias facultativas supracitadas, perguntando-lhe como as pronunciaria um brasileiro. Cito, com autorização do próprio: 

"No caso dos seus exemplos, a pronúncia lusitana causa sérios dificuldades de entendimento para o português. No caso de "recepção"/"receção", por exemplo, o brasileiro pronuncia cadenciadamente recePção, ressaltando o "p", de modo a diferenciar do vocábulo foneticamente idêntico "recessão", a que se reconduz o vocábulo português. O mesmo se dá com "concepção"/ "conceção", para o qual o realce do "p" intermediário serve para desassociá-lo do vocábulo "concessão". Nesses dois casos, é possível que o ouvinte brasileiro acabe por trocar o significado vernacular de uma palavra por outra. No caso de "deceção e "espetador", a pronúncia segue omesmo padrão. A diferença reside no facto [sic] de que, em ambos os casos, a pronúncia lusitana simplesmente não fará sentido para o "português brasileiro". Não há algo semelhante a "deceção", e o "espetador" será entendido, na melhor das hipóteses, com alguém que usa um espeto."

Confirma-se em suma que a novel escrita é geradora de equívocos. Deixe-se pois de pregar que tudo não passa de teimosia lusa. Insistir nisto, e disto fazer tábua rasa, eis a teimosia, e tuga. A adicionar às criativas sandices que se vão escrevendo e proferindo, como "pato" por "pacto", "adeto" por "adepto", "intato" por "intacto", que o AO não sanciona, mas que o iletrismo espicaça. O Ministério da Educação e o seu responsável máximo a tudo dizem nada. É ensurdecedor o silêncio a que se remeteu quem, tendo a obrigação de agir, se abstém de o fazer; mais, não deixa para a posteridade a memória histórica da incompetência, mas do medo, do cinismo político e da cumplicidade com um aborto.

Podem até ensinar às crianças de hoje que a receção se pronuncia como recéção. Dentro de uns 30 anos, se o AO vier a prevalecer, poderá esta pronúncia vingar, graças à frequente exposição à palavra (embora proferida com a vogal átona fechada, quando palavra isolada?). Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da omnipresente e sempiterna receção, perdão rêcêssão.

terça-feira, setembro 18, 2012

É A INJUSTIÇA, ESTÚPIDO!

No passado sábado, horas antes das ruas portuguesas se encherem com os gritos de indignação de centenas de milhares de manifestantes, o futurólogo americano Andrew Zolli fazia no Centro Cultural de Belém uma conferência no âmbito do encontro Presente no Futuro - Os Portugueses em 2030.

Zolli mencionou um estudo hoje clássico do primatólogo holandês Frans de Waal, onde dois macacos, em jaulas contíguas, são treinados para realizar uma dada tarefa, recebendo como recompensa um pedaço de pepino. Os macacos fazem a tarefa repetidamente sem problema. A dada altura, a recompensa muda: um dos macacos recebe na mesma um pedaço de pepino, mas o outro recebe uma uva, um alimento que estes macacos capuchinhos adoram. A reacção do outro macaco é de espanto e agitação e acaba por atirar ao tratador com raiva o pedaço de pepino que lhe é dado. Quando a cena se repete, o macaco pura e simplesmente entra em greve e deixa de realizar a tarefa, recusando o pepino, furioso com o tratamento desigual.

A experiência, que teve um enorme impacto no mundo da biologia e das ciências sociais, sugere que o sentimento de justiça, de equidade, é um sentimento natural, extremamente poderoso e com raízes muito anteriores às que a civilização, a cultura ou a religião possam ter criado. Talvez mais espantosamente ainda, em certas repetições desta experiência há casos em que o próprio macaco que recebe as uvas se recusa a trabalhar se não houver equidade no tratamento - numa demonstração de empatia e solidariedade que não pode deixar de nos fazer pensar. E que poderia fazer pensar Pedro Passos Coelho ou Vítor Gaspar para além dos seus clichés, caso o exercício os motivasse.

Vem isto a propósito das manifestações de dia 15 e do sentimento que as provoca. Parece evidente que a enorme dimensão das manifestações deve muito a uma motivação egoísta, à defesa dos interesses individuais próprios dos cidadãos - uma motivação totalmente legítima - e não escondo que me teria sentido mais emocionado se tivesse visto manifestações desta dimensão perante os cortes no RSI, os aumentos das taxas moderadoras na Saúde, os cortes no apoio a pessoas com deficiências ou os cortes na educação, mesmo quando estas medidas iníquas não nos afectam a todos. Mas o que acontece - e o que o Governo não percebe - é que a indignação das pessoas não se deve apenas aos cortes em si, mas à sua iniquidade, à sua injustiça - bem exemplificada no caso da TSU. Deve-se à falta de vergonha com que se cortam os salários dos trabalhadores para os entregar aos patrões; ao descaramento com que se taxam os rendimentos do trabalho para poupar os do capital; à imoralidade com que se corta o RSI mas se permite que as empresas mais ricas do país deixem de pagar impostos em Portugal e inscrevam (legalmente mas desonestamente) as suas empresas na Holanda; à abjecção com que se corta nos subsídios de férias e Natal de assalariados e pensionistas mas se conferem em discretos despachos essas mesmas benesses aos filhos-família contratados pelos gabinetes ministeriais; à crueldade com que se fecham serviços e se despedem professores mas se continua a permitir a especulação bolsista sem freio; à desfaçatez com que se mantêm as rendas das empresas dos amigos do Governo mas se aumenta a energia e os transportes públicos; à desonestidade com que se defende a concorrência e o mercado mas se garantem lucros vitalícios sem risco às empresas das PPP; à subserviência com que se defende o dever sagrado de pagar ágios a bancos parasitas mas se recusa qualquer obrigação de protecção dos cidadãos mais frágeis; à vileza de recusar negociar o memorando da troika mas rasgar sem hesitar o contrato social que está na base da sociedade e da democracia.

As manifestações de dia 15 vieram sem dúvida dizer que há um limite para os sacrifícios e que ele já foi atingido. Mas vieram principalmente dizer que o limite para a iniquidade foi ultrapassado há muito. Há situações onde as sociedades conseguem levar os seus sacrifícios a extremos muito mais dolorosos do que os que vivemos hoje em Portugal, mas quando conseguem fazer isso é porque o fazem em nome de um objectivo definido e partilhado por todos, é com base num princípio de solidariedade que não admite excepções, é quando existe uma confiança total na justiça da distribuição dos sacrifícios. Este Governo não tem - nunca teve - essa confiança. Até a pobreza pode ser suportada com dignidade, mas nenhum homem pode aceitar a injustiça, porque isso seria garantir um futuro de escravidão para os seus filhos. O que os portugueses começaram a dizer é que não serão escravos.

Esquecer que existe um forte e animal sentimento de justiça em todos os homens e mulheres é apenas um dos seus pecados. O pecado que todos os fanáticos como Vítor Gaspar cometem, o pecado que todos os políticos servis como Pedro Passos Coelho cometem, porque pensam que a força dos fortes os protegerá sempre da fúria dos fracos. Mas isso nunca acontece para sempre.


José Vítor Malheiros
(no Público de hoje)

terça-feira, setembro 11, 2012

Carta aberta de Eugénio Lisboa ao Primeiro-Ministro


Exmo. Senhor Primeiro Ministro
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Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe.
.
Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito – todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! – mas, antes, para ficar de bem com a minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.
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Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice – da minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco – ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”... A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.
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A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta – as físicas, as emotivas e as morais – um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu belíssimo livro intitulado “The Garden Party”“O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos.
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Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando longínquo. 
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Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde, actualizações salariais – tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o que não é dele e paga o que diz não ter,para que eles enriqueçam mais, passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.
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Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos , situados, de preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14.º andar, explicava, a desolação que se contempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas radicais de V. Exa. e do seu robótico Ministro das Finanças - sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... – têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página.

Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da vida – tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados. Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes  termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A “conservadora” Margaret Thatcher – como o “conservador” Passos Coelho – quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não dá.
.
Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio. Darei a V. Exa. – e com isto termino – uma pista para um bom entendimento do que se está a passar. Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: ”Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.

De V. Exa., atentamente,
Eugénio Lisboa

Ex-Director da Total, em Moçambique
Ex-Director da SONAP MOC
Ex-Administrador da SONAPMOC e da SONAREP
Ex-Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres
Prof. Catedrático Especial de Estudos Portugueses (Univ. Nottingham)
Ex-Presidente da Comissão Nacional da UNESCO
Prof. Catedrático Visitante da Univ. de Aveiro
Doutor Honoris Causa pela Univ. de Nottingham
Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro
Medalha de Mérito Cultural (Câmara de Cascais)

O SONHO DE PEDRO PASSOS COELHO

Belo texto. Que, a atentar na ideologia cultivada e despudoradamente denunciada pelas variadas declarações dessa figura de guru e mestre que é António Borges, o conselheiro especial de Pedro, não estará longe da verdade. Às anteriores acções de extermínio em massa, por Hitler, Stalin e Pol Pot, em nome da raça e da ideologia, suceder-se-ia a de um darwinismo social de Passos Coelho, em nome da sobrevivência dos mais aptos financeiramente?


«"Um terço é para morrer. Não é que tenhamos gosto em matá-los, mas a verdade é que não há alternativa. se não damos cabo deles, acabam por nos arrastar com eles para o fundo. E de facto não os vamos matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os nazis. Se quiséssemos matá-los mesmo era por aí um clamor que Deus me livre. Há gente muito piegas, que não percebe que as decisões duras são para tomar, custe o que custar e que, se nos livrarmos de um terço, os outros vão ficar melhor. É por isso que nós não os vamos matar. Eles é que vão morrendo. Basta que a mortalidade aumente um bocadinho mais que nos outros grupos. E as estatísticas já mostram isso. O Mota Soares está a fazer bem o seu trabalho. Sempre com aquela cara de anjo, sem nunca se desmanchar. Não são os tipos da saúde pública que costumam dizer que a pobreza é a coisa que mais mal faz à saúde? Eles lá sabem. Por isso, joga tudo a nosso favor. A tendência já mostra isso e o que é importante é a tendência. Como eles adoecem mais, é só ir dificultando cada vez mais o acesso aos tratamentos. A natureza faz o resto. O Paulo Macedo também faz o que pode. Não é genocídio, é estatística. Um dia lá chegaremos, o que é importante é que estamos no caminho certo. Não há dinheiro para tratar toda a gente e é preciso fazer escolhas. E as escolhas implicam sempre sacrifícios. Só podemos salvar alguns e devemos salvar aqueles que são mais úteis à sociedade, os que geram riqueza. Não pode haver uns tipos que só têm direitos e não contribuem com nada, que não têm deveres.

Estas tretas da democracia e da educação e da saúde para todos foram inventadas quando a sociedade precisava de milhões e milhões de pobres para espalhar estrume e coisas assim. Agora já não precisamos e há cretinos que ainda não perceberam que, para nós vivermos bem, é preciso podar estes sub-humanos.

Que há um terço que tem de ir à vida não tem dúvida nenhuma. Tem é de ser o terço certo, os que gastam os nossos recursos todos e que não contribuem. Tem de haver equidade. Se gastam e não contribuem, tenho muita pena... os recursos são escassos. Ainda no outro dia os jornais diziam que estamos com um milhão de analfabetos. O que é que os analfabetos podem contribuir para a sociedade do conhecimento? Só vão engrossar a massa dos parasitas, a viver à conta. Portanto, são: os analfabetos, os desempregados de longa duração, os doentes crónicos, os pensionistas pobres (não vamos meter os velhos todos porque nós não somos animais e temos os nossos pais e os nossos avós), os sem-abrigo, os pedintes e os ciganos, claro. E os deficientes. Não são todos. Mas se não tiverem uma família que possa suportar o custo da assistência não se pode atirar esse fardo para cima da sociedade. Não era justo. E temos de promover a justiça social.

O outro terço temos de os pôr com dono. É chato ainda precisarmos de alguns operários e assim, mas esta pouca- -vergonha de pensarem que mandam no país só porque votam tem de acabar. Para começar, o país não é competitivo com as pessoas a viverem todas decentemente. Não digo voltar à escravatura - é outro papão de que não se pode falar -, mas a verdade é que as sociedades evoluíram muito graças à escravatura. Libertam-se recursos para fazer investimentos e inovação para garantir o progresso e permite-se o ócio das classes abastadas, que também precisam. A chatice de não podermos eliminar os operários como aos sub-humanos é que precisamos destes gajos para fazerem algumas coisas chatas e, para mais (por enquanto), votam - ainda que a maioria deles ou não vote ou vote em nós. O que é preciso é acabar com esses direitos garantidos que fazem com que eles trabalhem o mínimo e vivam à sombra da bananeira. Eles têm de ser aquilo que os comunistas dizem que eles são: proletários. Acabar com os direitos laborais, a estabilidade do emprego, reduzir-lhes o nível de vida de maneira que percebam quem manda. Estes têm de andar sempre borrados de medo: medo de ficar sem trabalho e passar a ser sub-humanos, de morrer de fome no meio da rua. E enchê-los de futebol e telenovelas e reality shows para os anestesiar e para pensarem que os filhos deles vão ser estrelas de hip-hop e assim. 

O outro terço são profissionais e técnicos, que produzem serviços essenciais, médicos e engenheiros, mas estes estão no papo. Já os convencemos de que combater a desigualdade não é sustentável (tenho de mandar uma caixa de charutos ao Lobo Xavier), que para eles poderem viver com conforto não há outra alternativa que não seja liquidar os ciganos e os desempregados e acabar com o RSI e que para pagar a saúde deles não podemos pagar a saúde dos pobres.

Com um terço da população exterminada, um terço anestesiado e um terço comprado, o país pode voltar a ser estável e viável. A verdade é que a pegada ecológica da sociedade actual não é sustentável. E se não fosse assim não poderíamos garantir o nível de luxo crescente da classe dirigente, onde eu espero estar um dia. Não vou ficar em Massamá a vida toda. O Ângelo diz que, se continuarmos a portarmo-nos bem, um dia nós também vamos poder pertencer à elite."»

José Vítor Malheiros
(no Público de hoje)