sábado, dezembro 26, 2015

REPOUSO

Si l'enfant repose,
Un ange tout rose,
Que la nuit seul on peut voir,
Viendra lui dire "bonsoir!"

Marceline Desbordes Valmore (1786-1859)

Ao menino que dorme
um anjo cobre e faz sombra
as asas trazem a estrela e depositam-na
no berço que não te alenta

cobre com as alturas dos hosanas
o rugido dos leões e o silvo das espadas
dos inimigos que arrefecem o ar
com ameaças de morte ao menino

vem aquietar o coração dos pais
dizer-lhes que a noite é amiga
nela se aperfeiçoam os perfumes
que nos chegam na viragem do dia

dorme bem — diz — menino,
hosana, repousa dos trabalhos,
depois do morticínio
estenderão as tuas mãos a paz

Rui Miguel Duarte
24/12/15

quinta-feira, novembro 19, 2015

REGRESSO A OLISSIPO

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“Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage…”

Joachim du Bellay (1522-1560)



Terá Ulisses visto fumegar a carne assando

subir acima das nuvens que submergiam a visão?

Por onde navegou ele entre Circe a a dormência



das ondas, que o embalavam para um lado e outro?

aspirava rever da aldeia a sombra

da casa que os seus maiores construíram

e cada onda empurrando a balsa



é um tijolo que refaz a memória da casa

do azul incandescente surgem aves

das bandas da ribeira, canto trazem a notícia



da morte das sereias já não precisa o herói

de segredos de ser amarrado ao mastro

para aprender que o sonho é a realidade



a sabedoria e o amor, que Penélope

já não está encerrada em casa de mãos presas

ao tear, o dorso vergado ao sol



que nasce e se põe em cada dia

já não há sombra nem esperança

eis Olissipo que se eleva da claridade do rio



Rui Miguel Duarte

19/11/2015






sexta-feira, agosto 28, 2015

BALADA DO TEJO

Há quem siga os rios até ao mar
eu sigo os mares até a um rio
nele flutuam os meus olhos
que à força de flutuar
são um navio
que as ondas aclamam ao passar

pelos mares que dão para um rio
pelos rios que dão para um mar
vai partir como a sombra o meu amor
vai num navio sem vela
olhos sem as pestanas dos remos 
corpo sem braços que o levem,
confiado apenas no rumo 
que as águas os lemes escrevem
águas de rios águas de mares

eu sigo os mares até a um rio
que à força de tanto flutuar
as duas águas os meus olhos submergem
são um navio que à força de tanto navegar
são um roaz de bandeira
assim sigo para terra até de rios
não restar senão uma ribeira

a ribeira das naus o estuário
em que a terra acaba
o palácio em que dorme
a falua e o meu coração desaba

esta é a ponte
entre o mar que se torna rio
e em que o rio deixa de ser mar

ponte são os olhos do meu amor
que à força de tanto o olhar
espelhados em milhões
de centelhas no Tejo
arriba nele o meu navegar

Rui Miguel Duarte
27/08/2015

terça-feira, julho 21, 2015

ÓCIO NEGÓCIO



“na interminável busca por vestígios de pó”
Margarida Campilho, Roma amor

interminável Marta, Marta,
arrastando diante de ti toda a terra
é o vestígio que buscas
debaixo do móvel
debaixo do tapete
debaixo de tudo
debaixo de ti, Marta

até à mais infenitesimal partícula
que buscas que inventas, de cada uma fazendo
um negócio um salário pois trabalhará o Homem
até à mais infinitesimal gota de suor do seu rosto

descobres e inventas, em cada coisa que trabalhas
a decomposição do átomo, e cada um decompões Marta,
e assim trabalhas até o teu próprio nome
M-a-r-t-a, M-a-r-t-a

e nisto dispões taça a taça a honra
que me ofereces no vinho, no cansaço
das ondas que batem continuamente
do mar da Galileia, tantos são os teus cuidados
para com o teu convidado,
sentado à cabeceira do jantar

isto basta: buscar aos pés do Mestre
as palavras que reinventam o mundo
sentada, Maria é a alma do ócio

Rui Miguel Duarte
9/07/15

quinta-feira, julho 09, 2015

MEDITAÇÃO DE ADÃO DEPOIS DA QUEDA

“Und wo wir Zukunft sehn, dort sieht es Alles
und sich is Allem und geheilt für immer”
“E onde nós vemos futuro vê ele Tudo
e a si no Todo e salvo para sempre”
Rainer Maria Rilke, in Elegias de Duíno 8 (original e tradução de Maria Teresa Dias Furtado, Assírio & Alvim)

Não queria sair do Paraíso. Por isso
quis ver Tudo da copa da árvore.
quis ser mais alto e sobretudo permanecer
caso me faltasse a mão para abarcar toda
a visão, todo o espaço do Jardim feito concha
pelos rios que correm sem nascente nem foz.

Ausente da brisa do crepúsculo,
que é o Teu rosto dado de frente
escolhi um vento com aroma
de um fruto dando de lado.

Há uma dor em mim que é a da aproximação,
quanto mais me chego a Ti mais me dói.
Ser ausente do que vi em Ti,
que vês Tudo, que és salvo em Ti
e eu em Ti nos Teus olhos
de sangue de animal manso.

Escolhi outro crepúsculo
um sol caído em outros olhos,
olhos de aproximação da cobiça
da vida ignorante de quão espesso
é o seu vazio, de que olhar
os rios do Paraíso, que são
a Tua presença,
é ver-Te ausentando-Te
e eu neles para longe
fluindo sem nascente nem foz.

Não queria sair do Paraíso mas possuí-lo,
não me chegava esta mulher que
me deste, só o ver-me Tudo
mais asa do que anjo
mais sabor do que fruto.

Mas foi ainda nas águas dos rios,
que são o que me resta do passado,
que vejo o futuro.

Rui Miguel Duarte
18/06/15

Originalmente publicado em Salmo Presente

quarta-feira, maio 27, 2015

POUR MA MÈRE ET POUR MON PÈRE

Il y a plus de fleurs dans mon coeur que dans ma mère et mon père
voyez tous ces oiseaux dans le ciel
c'est jolie ils chantent une berceuse
de "frère Jacques" la nuit passe les oiseaux
sont en train de cacher leur poussins
le soleil revient papa a dit à maman
"on pourrait acheter un chien pour Caro?"
après maman dit: "Caro, on va t'acheter un chien"
papa a dit que c'était bien un chien à la maison
et elle a son chien elle est très contente
elle s'est bien occupé des animaux

les fleurs poussent super bien et dans mon cœur
il y a toujours une place pour ma mère et pour mon père
FIN

27/05/2015

Poema de Caroline Ventura-Duarte (7 anos)

domingo, abril 19, 2015

FLUXO DE SANGUE

“Porque dizia consigo: Se eu tão-somente tocar a sua roupa, ficarei sã."
Evangelho segundo Mateus 9:21

Dizia comigo: há um rumo de sangue
que me conduz a ti o sangue que
ao correr repetidamente abriu sulcos
nas minhas lágrimas e erodiu a minha alma

dizia comigo: há um princípio de sangue
no meu e teu fim, foi ele o sangue que pintou
a veste branca, não da púrpura
dos senadores romanos
mas de um escarlate
que vem da medula
da dor animal

dizia comigo: há um trâmite de sangue
de troca por troca, de simples oferta e procura
de mim para ti
ai se soubesse não teria trocado tanto dinheiro
para ficar com o meu sangue, que afinal
insistia em me deixar as feridas insaradas

dizia comigo: há um fluxo de sangue
do teu e meu sangue, um rasto
de frutos silvestres espremidos
na orla do teu manto

Rui Miguel Duarte
18/04/15

quarta-feira, março 11, 2015

CALEB

“Há anos que escrevo o mesmo poema”
J. T. Parreira

Sou ainda o mesmo que fui outrora
ainda hoje os mesmos olhos
olham por dentro das mesmas pupilas
e procuram o mesmo infinito

há quarenta anos que sonho
o mesmo sonho
que este passeia pelo monte e lhe cria
um nome, Hebron,
e o soletra letra a letra,
como o nome de um amigo, com
o mesmo suspiro em silêncio

há quarenta anos que espero
então era soldado e lavava
a espada no sangue de gigantes
hoje lavo-a na chuva
que se acumula no vale

sou o mesmo rosto furtivo
à viragem do vento e recalcitrante
à passagem dos dias

há anos que escrevo o mesmo poema
que fala de promessas e de campos largos
e montes para conquistar
a mão do Senhor abrindo a minha
a pulso no papiro

os cabelos que hoje são brancos
já o eram então há quarenta anos:
embora mais longos

Rui Miguel Duarte
6/03/2015

domingo, janeiro 18, 2015

PRIMEIRO

primum uiuere deinde philosophari


primeiro vivamos depois filosofemos
primeiro sejamos devedores do recobro
das árvores depois da mutação da tormenta

primeiro escondamos a vergonha
antes de entrarmos nos salões de sermos mestres 
que cospem a esmola e a pisam
primeiramente sentemo-nos no degrau que ocupa Lázaro

primeiro aprendamos o tremor
que há um calafrio que é volátil
e tem rosto de Medusa que os seus cabelos 
mordem e o seu olhar cria em nós estátuas 
primeiro aprendamos que há uma espada 
que ceifa a raiz e o eco do medo

primeiro bebamos o vinho 
na estação e fora da estação
conheçamos que todas as cores têm 
matizes notas no âmago da candura
primeiro agarremos o sonho
passeemos nele todo por dentro
enquanto o vento o traz e o leva

primeiro filosofemos depois poetemos
com a boca do abismo à beira dos olhos
é aí que descobrimos 
que há asas à beira de nós
pés seguros nas mãos rijas dos anjos
contudo são a terra que nos dá 
as flores para o nosso contentamento 

primeiro amemos depois vivamos

Rui Miguel Duarte
18/01/2015