sábado, dezembro 18, 2010

TERMÓPILAS


“Estrangeiros, vai contar aos Lacedemónios que jazemos

aqui, por obedecermos às suas normas”

Simónides de Céos, Epitáfio das Termópilas frg. 92 Diehl


Das longínquas Termópilas, estrangeiro

à passagem, Lacedemónios, vos escreve

ao ler à beira do caminho

da pedra fria esta inscrição breve


o silêncio pede um reconto,

que a salve da memória:

deste estreito onde só os heróis ousam

surge a lenda onde tombou a história


a lápide sepulcral não desprende gemidos

as letras nela gravadas são de memória brilhante

não as carcome o bolor nem o verdete

nem o tempo sobre ela é lume de um instante


dos trezentos de Leónidas que não hesitaram

lutar ou morrer para obedecer às vossas leis

recebei o testemunho, Lacedemónios, silente

e que admiração perpetuamente viva lhes celebreis


18/12/10

sexta-feira, dezembro 17, 2010

CRISTOLOGIA, CRISTOLOGIAS

A CRISTOLOGIA


A doutrina central do Cristianismo, e aquela que está no fulcro da sua constituição enquanto artigo de fé e sistema de pensamento retoricamente elaborado, é a doutrina de Cristo, ou Cristologia. Esta centralidade radica na própria fundamentação etimológica do Cristianismo, que é Cristo, só se entendendo esta porque ontologicamente esta pessoa, Cristo, é a “pedra basilar” do Cristianismo. Assim, Cristianismo e a definição do que é ser cristão não se definem pela profissão e admissão como revelados e verdadeiros de um conjunto de artigos, preceitos, princípios, teorias e costumes, mas pela resposta a uma pergunta fundamental, que tem precisamente no seu núcleo o Cristo: “Quem é Cristo para cada um?”

Desde os primórdios que a questão da natureza de Cristo animou acesos debates doutrinários, movimentações diplomáticas, jogos de poder e concílios. Nas suas diversas e subtis cambiantes, suscitou divisões, perseguições e excomunhões, esteve na base da fixação de ortodoxias e da delimitação de heresias.

Serão apresentadas em síntese as várias doutrinas cristológicas da antiguidade cristã. O propósito é o de situar os debates e abrir portas para a compreensão de como que fixou uma doutrina e da multiplicação dos seus avatares até aos dias de hoje.


CRISTOLOGIA NAS SAGRADAS ESCRITURAS


Não será exagerado dizer que o principal texto definidor de uma cristologia puramente bíblica é o prólogo do Evangelho de João. Dir-se-ia a condensação de uma cristologia completa: aí o logos é identificado com a pessoa de Jesus Cristo, sem ser explicitamente designado, com Deus; por outro lado, é proclamada a sua humanidade. Esta cristologia é comum a outros textos e autores do neotestamentários, como se verá.

Assim, a afirmação da natureza divina surge claramente afirmada: este logos é Deus (1:1 θεὸς ἦν ὁ λόγος). É o logos incriado, mas entidade criadora, responsável única pela integralidade da criação (vv. 3) e que o evangelista teria por certo concebido à luz de Provérbios 8:22-26: a sabedoria, primeira obra de Deus, e arquitecta e engenheira da Sua criação.

Com a concepção do Cristo como o logos, João introduziu a questão da natureza de Cristo num contexto mais lato de debates teológico-filosóficos, vivos no seu tempo, que precederam a Encarnação e não se extinguiriam com o Pentecostes, situando a manifestação e revelação de Cristo como aquela que esclareceria de uma vez por todas a verdade acerca de Deus. As referências seriam provavelmente o estoicismo, o gnosticismo e as exegeses do tipo da do rabino judeu helenista Fílon de Alexandria (ca. 20 a.C. — 50 d.C.).

Precisamente Fílon, partindo da distinção dicotómica platónica entre os dois mundos, o perfeito (das Ideias e de Deus), e o material, imperfeito, reconhece a existência de um hiato intransponível entre os dois mundos, que impossibilita toda a comunicação entre os mesmos, e postula a necessidade de um nível de seres intermediários que servissem de ponte. O logos seria o grau mais supino destes seres, e Fílon chama-se “o primogénito de Deus”. Este logos seria um demiurgo, um ente criador. A figura do “anjo do Senhor” do Antigo Testamento seria para Fílon o logos de Deus. A este título, o que o prólogo de João pretende é estabelecer a perfeita divindade de Jesus Cristo.


Outros passos do Evangelho de João poderiam ser aduzidos em suporte da cristologia divina. Por exemplo, as declarações teonímicas aplicadas a Si próprio: Ἐγὼ εἰμι (ego eimi) — estas são as palavras registadas pelo autor do Evangelho dos ditos de Jesus, tradução grega do tetragrama IHWH, e que expressam em grego o mesmo que em português “sou eu” (simples declaração de identidade) ou “eu sou”, a declaração teonímica dada pelo próprio como Seu nome identificador exclusivo (cf. Êxodo 3:14–15). A expressão ocorre seis vezes neste evangelho: 8:24, 28, 58; 13:19; 18:6–7 (bis). Os três primeiros versículos citados situam-se numa contenda verbal com religiosos judeus. Jesus afirma aí a Sua identidade divina, tenda as reacções dos ouvintes sido de dois sentidos contrários: uns creram nele, outros rejeitaram-no e tentaram apedrejá-lo. Em 8:58, Jesus, à declaração de identidade, acrescenta que a ela era anterior à de Abraão. Em 18:6-8, o momento da anagnórise de Jesus, ao identificar-se perante os soldados que o que o procuravam no Getsêmani para o prenderem. Ao ouvirem a resposta de Jesus, os soldados caíram por terra, como se atingidos por vendaval.

Esta declaração de Jesus acerca de Si mesmo não se acha apenas, porém, no Evangelho de João. No de Lucas, 22:70, perante o tribunal judaico, a uma pergunta sobre a Sua identidade como Filho de Deus, transferiu o ónus da resposta para os próprios interrogadores, reiterando deste modo indirectamente a sua identidade: ὑμεῖς λέγετε ὅτι ἐγὼ εἰμι (hymeis légete hóti ego eimí) “Sois vós que dizeis que eu o sou!” No relato do mesmo episódio em outro sinóptico, Marcos 14:62, a declaração aparece também. Tratando-se do nome divino, o nome que nenhum ser humano poderia ter o atrevimento de pronunciar, muito menos aplicando-o a si mesmo, não será difícil de compreender, em virtude da mentalidade judaica comum, seria impossível outra reacção da parte dos sacerdotes e líderes religiosos que não a de indignação, escândalo e feroz cólera perante aquilo que, face aos seus princípios, seria a pior das blasfémias: que um homem se equiparasse ao Deus Eterno e Todo-Poderoso.

Merece também menção a este propósito a exaltação cristológica do hino transcrito por Paulo, na Carta aos Filipenses (2:6-11). Nele, Jesus Cristo é proclamado Κύριος Kyrios, “Senhor”, título que expressava a noção contida no hebraico Adonai, ou no tetragrama. Designar Jesus Cristo como tal implicava atribuir-Lhe natureza e dignidade divina. A visão de todas a criaturas ajoelhadas em sujeição a Jesus Cristo é uma paráfrase exegética de Isaías 45:23-24. Nesse passo, é IHWH (tradicionalmente traduzido em plenas maiúsculas como “SENHOR”) quem fala, anunciando que perante Si mesmo será essa sujeição. A exegese é inequívoca: IHWH é Jesus Cristo.

As declarações da identidade divina de Jesus, registadas pelos autores neotestamentários, serviriam pois para afirmar que a divindade de Jesus Cristo era a do próprio IHWH e que Jesus Cristo é o próprio IHWH, não uma segunda divindade e de inferior categoria.


A figura do demiurgo, como criador deste mundo e personagem distinta do Deus supremo, teria fortuna no gnosticismo, corrente cristológica mística e iniciática, fortemente influenciada pelas escolas filosófica platónica e pitagórica. Também estes estabeleciam a separação inconciliável entre os dois mundos. Se Cristo é divino, não pode ser humano, porquanto o perfeito não se pode manifestar nem tão pouco se misturar com o imperfeito e corrupto. Seria um ser puramente espiritual, sem nada de humano. E aqui surge o ponto a clarificar: o logos divino, porém, adquiriu natureza humana (v. 14). Tornou-se homem, “carne” (σάρξ sarx), e viveu no meio de homens. Precisamente este passo do livro de Provérbios, admitindo-se que se refira a Cristo, tem sido invocado em suporte de concepções diversas acerca da natureza deste. Os debates com os religiosos judaicos (e os Evangelhos em geral) transcritos pelos evangelistas têm a evidente virtude de circunscrever Jesus à humanidade, na sua vida e interacção com os outros seres humanos. A rejeição da encarnação, da humanidade de Cristo é, para João (cf. 1 João 4:2), marca distintiva do espírito do Anticristo. Assim, tanto o prólogo do seu Evangelho como a sua primeira epístola teriam como propósito estabelecer inequivocamente advertir a Igreja contra as doutrinas gnósticas, que desde cedo iam minando por dentro a saúde e unidade espiritual. Tanto quanto declara a divindade de Cristo, o hino da carta aos Filipenses afirma igualmente a sua humanidade, uma humanidade assumida na plenitude, em detrimento do uso de todas as prerrogativas da Sua divindade (vv. 6-8).

O logos do prólogo do Evangelho joanino, o criador de tudo sem o qual não do existe foi criado, está em harmonia com as restantes declarações cristológicas deste Evangelho e de outros livros do Novo Testamento. Este logos criador não é pois um mero demiurgo inferior e intermédio, mas o próprio Deus.


Em terceiro lugar, logos era a razão activa do universo e que o anima. Material, era frequentemente identificado com Deus e a Natureza. O logos seria assim como que a anima mundi, o princípio activo e sustentador do universo. O ideal de vida estóico era a conformidade com esse princípio. Esse logos estaria disseminado em todas os seres, incluindo nos humanos. Todos conteriam em si uma parte, uma “semente” de desse logos. Neste sentido se falava λόγος σπερματικός (logos spermatikós) “logos seminal”. Esta doutrina do logos influenciaria Fílon de Alexandria e a Literatura Patrística. Justino Mártir (m. 165 d.C.), por exemplo, colocou-a na ligação entre a velha filosofia helenística e o Cristianismo, que retoma a tese do λόγος σπερματικός. Também com os estóicos e o seu logos parece, pois, debater o prólogo joanino: o logos, esse princípio animador do universo, seria efectivamente Deus, o próprio, o criador e sustentador de todas as coisas.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

ANTI-NARCISO

“Donec eris felix multos numerabis amicos”

Ovídio, Tristia 1.9.5


Enquanto fores

algo mais do que uma nuvem

e te não contentares

com a chuva no rosto

mas tiveres nas mãos a chave do sol

e fores o deus dos espaços largos


não te contarão entre os que

cavam a terra com os dentes

enquanto fores

nos teus lábios

o espectro do arco-íris


porém, quando fores poeta

deixarás de ser rico

para ser só poeta


livra-te

de te encantares com o canto

e o allegro em plena orquestra

não te assombres do aplauso

dos teus amigos, muitos


ainda terás

as pedrinhas lançadas ao rio

contadas uma a uma

e por céu as águas


baste-te isso

reconhece-te nelas

como o teu reflexo


15/12/10

quarta-feira, dezembro 15, 2010

OS LÍRIOS


“Reparem como crescem os lírios do campo! E eles não trabalham nem fiam. Contudo digo-vos que nem o rei Salomão, com toda a sua riqueza, se vestiu como qualquer deles.”

Evangelho de Mateus 5,28-29 (versão A Bíblia para todos)


Falo-vos da corola

dos lírios

como as fímbrias do manto

do rei

assim foram vestidos


que rei alguma vez

fia o seu próprio manto

ou precisa de apressar o olhar

para o interior de todas as montras

nos centros comerciais

em busca de trajo

em busca de um vestido de noite?

os reis vestem constante

trajo de gala

todos os seus gestos são

liturgia de fausto e cerimónia


e os lírios,

alguma vez soubestes

que precisem de estugar o passo

de se precipitar na descida

para o metro não vão os pés diferir-lhes

as horas, ou sejam devorados nos magotes

das gentes?


alguma vez ouvistes

que tecem a malha das pétalas abertas

ou a trama do seu destino

os lírios?

não elaboram o tempo

a procurar terra bastante

para as raízes


diante deles

empalidece o ouro

do manto de Salomão


mostro-vos os lírios,

que vos tocam com cores limpas

as mãos

são um pequeno sol

na largura dos campos

que vos pudesse amanhecer

o coração



Rui Miguel Duarte

9/12/10


sábado, novembro 27, 2010

TRATADO DA SABEDORIA E DA IGNORÂNCIA




O apologeta cristão Clemente de Alexandria (circa 150-215 d.C.), um dos escritores da mas alta intelectualidade dentre os Pais da Igreja (procurou harmonizr a verdade da fé cristã com o pensamento filosófico) escreveu que o pecado deriva da ignorância e resolve-se pelo conhecimento de Deus e pela bondade. Assim com Adão, que pecou ao ter fugido da educação divina. O primordial problema humano seria pois um problema de ignorância.

Assim ele se posicionou na sua polémica com o Gnosticismo de Valentim. O Gnosticimo era uma corrente doutrinária e de conduta surgida nos meios cristãos e cuja actividade as cartas neo-testamentárias, especialmente as de João, já denunciam. Eivada de filosofia helenística, influenciada sobretudo pelas radicais dicotomias "espiritual versus físico", de extracção platónica e pitagórica, advogavam que o conhecimento (gnosis) era o veículo que conduzia à plenitude, não a salvação nem o arrependimento, nem o novo nascimento. A gnose consistia na aquisição de conhecimentos secretos, misteriosos, iniciáticos, profundos, os verdadeiros conhecimentos, que se encontravam para aquém e para aquém das doutrinas correntes comuns. Estava pois apenas acessível a alguns, os que aderissem ao grupo, seus preceitos e fundamentos, e seguissem as suas normas de conduta.

A oposição que Clemente de Alexandria desenvolve ao Gnosticismo retoma os meus termos do antagonista: fala em conhecimento, e no cristão gnóstico, mas com distinções e inflexões de sentido: há um verdadeiro Gnosticismo e um falso. O falso é o dos Gnósticos. O verdadeiro é o cristão. Aqueles opunham fé e conhecimento e privilegiavam este; Clemente harmonizou-os: fé constitui a base de todo o conhecimento. O conhecimento, a filosofia por sua vez dá instrumentos de fundamentação racional ao Cristianismo, que lhe permitem posicionar-se em superioridade face os adversários intelectuais. O conhecimento ajuda a compreender as razões daquilo em que se crê. A fé confere salvação, mas o conhecimento torna o homem perfeito e torna-o um “cristão gnóstico”.

Sempre pensei, desde que me abracei a fé cristã, que o problema “homem” era o próprio homem e a sua índole. Antes mesmo já o pensava. A história humana estava lá, para o atestar. O “pecado”, como a Bíblia o qualifica. A perversidade, a maldade, a corrupção, o egocentrismo, variante mais estrita do antropocentrismo. Portanto, um problema de natureza, da physis, do ser, da ousia,. Conhecimento? Não seria mera cosmética, que embeleza a casca, quando a organismo padecia severamente na sua saúde (lembro-me aqui das dicotomias socrático-platónicas)? Mera transferência de responsabilidades? A equação de Clemente de Alexandria fez-me contudo pensar que de outra perspectiva, e voltar à fonte bíblica. Essa ideia não seria de todo descabida. É verdade que em seu entender o pecado não se perpetua pela hereditariedade, mas pelo exemplo. E que a sua concepção de gnose e a ênfase nesta são em não pequena medida subsidiárias das dos Gnósticos. Cristo é o bom médico, que comunica uma medicina que é a gnose salvadora, através da qual conduz os homens do paganismo à fé e desta ao conhecimento mais perfeito. Todavia, parece possível achar alguma relevância na inflexão de Clemente, designadamente se se fizer o essencial, que é a definição exacta dos termos, em geral e em particular, no todo e nas partes. De que se fala, de que fala ele quando fala de “conhecimento”?

A gnose clementina não consiste no conhecimento puramente intelectual (embora este seja necessário), nem esotérico, mas na busca de perfeição moral. Se o pecado se resolve pelo conhecimento de Deus, o seu império depende da ignorância e da alienação em relação a Deus. Este é o entendimento inferível de vários passos das Escrituras. No NT, em Actos os Apóstolos 17,30, I Coríntios 15,34 e Efésios 4,18 o pecado é assimilado à ignorância de Deus, constituindo consequência desta, e ao mesmo tempo causa dela, num ciclo vicioso. É bem célebre a declaração de Deus no livro do profeta Oseias (4,6): “O meu povo está destruído, porque não me reconhece” (versão BPT). Tão célebre quanto a que o próprio Jesus pronuncia, e que vai no mesmo sentido (Evangelho de João 8,32): “Conhecerão a verdade e ela vos tornará livres”. Relacionando esta última com outra declaração, muito arrojada, de Jesus (ib. 14,6), em que Se afirma como a “verdade”, facilmente se entende que a estrada da plenitude, da liberdade está no conhecimento do próprio Jesus, e de Deus, que é Jesus.

Estando prestes a expirar, Jesus dirigiu ao Pai uma súplica em favor daqueles que o haviam condenado à morte e que sobre esta festejavam (Evangelho de Lucas 23,34): “Pai, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem”. No estertor da morte, a não dirigiu a atenção para o pecado dos carrascos, não se irou nem se deprimiu por cause dele. Viu no pecado o problema mais remoto da ignorância. Isto não dirime a culpa dos carrascos, mas coloca-a numa outra perspectiva: a culpa existe, e por consequência o pecado, e consiste em se ignorar. Sim, aquelas gentes ignoravam Deus, pois se O conhecessem teriam reconhecido Jesus. E se ignorava Deus ignorava tudo quanto Deus é e Jesus mostrou com a sua vida: amor, graça, dádiva gratuita. Não sabiam quem era Deus, não o conheciam, e de si mesmas eras desconhecidas. Um viciado na droga, no álcool ou no jogo precisa de cair em si e se reconhecer como é, a sua imagem fielmente reflectida num espelho. Ao renunciar a alimentar o seu coração com uma imagem de si mesmo criada na sua mente para consumo próprio, como estratégia de auto-desculpabilização, reconhecer-se-á como aquilo que é, viciado, pobre de espírito, necessitado, carente, prisioneiro no fundo de um poço, limitado, inepto, humano. Ao confrontar-se com o próprio “eu”, levantará as mãos em clamor pela ajuda de uma terceira mão, que o arrancará da prisão em que o seu ser se acha. Essas gentes não eram capazes de enxergar um palmo diante dos olhos, para além da neblina mental, teológica e emocional que criaram, e recusavam-se a mirar-se noutros espelhos à excepção desses de feira, que distorcia a imagem reflectida, representando a sua obesidade como uma elegância de top model, que esbatia as rugas exibidas pelos seus rostos, que os fazia parecer mais altos do que eram.

O versículo 10 do Salmo 111 resume-o lapidarmente, constituído a fundação do livro dos Provérbios: “O princípio da sabedoria é o temor do Senhor; todos os que assim fazem têm entendimento.” Temer a Deus, crer n’Ele, honrá-Lo o suficiente para fazer d’Ele e da Sua Palavra o guia da vida, com renúncia ao próprio entendimento, ao próprio conhecimento, às glórias próprias e considerá-las como vaidade e escória (cf. Filipenses 3,8) em comparação com o conhecimento de Cristo — aí está o começo da sabedoria. O conhecimento de Deus não teórico, mas o Deus manifesto em amor, o coração e não no intelecto (Efésios 3,19). “Conhecer”, no sentido hebraico, que implica contacto íntimo, mesmo sexual, como entre os esposos. O Logos que se fez carne, e se faz carne, em nós. O desprezo destas coisas, pelo contrário, é causa de ruína.

quinta-feira, novembro 25, 2010

PAULO DE TARSO NA PRISÃO

“… A golpes de paixão, tento passar…”

Miguel Torga, “Emparademento” (in Orfeu Rebelde)


Emparedado tentei

já desfazer as cadeias

que me puseram no degredo

as mãos e os pés

estão unidos com os ferros

e transmitem à boca o pedido

de um grito

que a noite eleve

para lá das grades

ao terceiro céu, e que

me traga a frescura do consolo


pois sei que as cadeias não são negociáveis

para os que seguem Cristo,

nem tão pouco feitas perpétuas

ou elas cedem, ou o muro cede

doem afinal ainda menos

do que o desespero

de se terem incrustado

nas mãos e nos pés,

do que um destino tumular


das cadeias do meu avesso,

que me esmurra

como um doido varrido e que

a golpes de paixão, tento passar


é aí, no recesso

que mais emparedado estou


por durante um minuto

ter desaprendido

de cantar


16/11/10

domingo, novembro 07, 2010

PLATONISMO NO CRISTIANISMO

Estou aprender muito com o ensino de História da Patrística na Universidade Lusófona do Porto. Inclusive, o quanto há de platonismo (ou na sua versão mais grave religiosa do neo-platonismo) e da sua constituição dualista no Cristianismo, católico, protestante e evangélico, ainda nos tempos hodiernos.

domingo, outubro 10, 2010

QUE DIREIS AOS POBRES?


Que direis aos pobres
ao vo-los anunciarem às vossas portas?
vêm incógnitos batidos das marés
das gentes, e se incrustaram
na crista do vosso olhar

serão somente poeira acumulada
à passagem de milhões de pés?

que direis aos que a própria terra
sorve de fome lentamente
a quem o céu sonegou as chuvas
aos traídos do vento,
aos que bebem no fundo
da misericórdia a sopa às gotas

que direis àqueles a quem oprimis
para vos engrandecerdes vos elevardes
acima dos bicos dos vosso pés?

que lhes direis, a esses
a quem vos foi ordenado que lhes désseis
de comer e a quem o prato
cheio de nada lhes retirais?

Que direis aos pobres?

9/10/10

domingo, setembro 26, 2010

O BOM PASTOR


O Bom Pastor é aquele

que conhece as quatro estações

das ovelhas


conhece a espessura da sua lã

e sabe que esta se no Verão lhes sobra

no Inverno não lhes calafeta

todas as portas e janelas da pele

ao frio


O Bom Pastor

conhece os azimutes todos

dos caminhos bravios das montanhas

onde habitam todos os caules

que lhes servem

de alimento


no cajado do tempo

na vara das estações

cada uma com o seu açoite

cada uma com o seu consolo


conhece-lhes os esgares do céu

de que boca de floresta

de que toca da noite

espreitam quentes os focinhos dos lobos


O Bom Pastor

é aquele que canta um canção

de amor à lânguida flauta

para as suas ovelhas

que lhes oferece no flanco

moribundo

um redil para seu abrigo


no cajado do tempo

na vara das estações

cada uma com a sua morte

cada uma com a sua vida


19/09/10

terça-feira, setembro 21, 2010

ELIAS


Quem está na montanha vê as coisas de cima

e a roupa do corpo parece-lhe durar

para sempre imune aos temporais

e ao alvoroço vacilante da multidão


quem está na montanha

toca com a ponta dos dedos

nos lumes do céu

e maneja mais destramente

o trovão, a majestosa imponência

dos dedos de Deus


quem está na montanha

de um gesto

incendeia o altar do sacrifício

e jorra o rio

na água límpida das pedras


quem está na montanha

domina as artes do discurso

é mestre de ilusionismo bobo de feira

tratador de ventos terramotos fogos

doutor da mais cristalina sabedoria


quem está na montanha

é paladino e chanceler da justiça

da nação


quem está na montanha

da montanha pode cair

e só numa gruta abscôndita na alma

pode escutar o sussurro

o harmonioso murmúrio

da voz de Deus


12/09/10

quarta-feira, setembro 08, 2010

PROCURAMOS UM DEUS


"O reino dos antigos deuses não resgatou a morte / E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Senhora da Rocha"


Há manhãs que acordam nos rostos

opacos e escuros das tempestades

para nosso afrontamento, e que assim

nos conduzem a quebrar a aliança

que nos liga às coisas

à realidade


a estilhaçar o fio de prata

que nos liga ao corpo, ao chão fremente


mas tudo se pode afundar no mar


é então que sacerdotes de um culto estranho

nos aproximam do peito as facas

igualmente escuras e opacas

e no-las apontam com rigor ao coração

e nós derivamos o olhar, o clamor

para os recintos rasgados na terra

para os círculos dilacerados no céu

em demanda no voo das aves

de um olhar fresco dos deuses antigos

de uma voz que se fizesse ouvir

na vibração dos ares


nas paredes poliédricas de templos de seda

procurámos o reino, o lugar de repouso

a casa à beira-mar

mas nada nos resgatou da morte

nada desviou a sombra da faca

da aorta, para longe da boca do medo

o reino dos antigos deuses

não chegou ao nosso meio

porque era vazio e frio de granito

e quanto se exaltou o vento

assim se foi


e sem saber sabíamo-lo: buscávamos um deus

que transpusesse as paredes e o espaço

que morresse connosco a nossa morte

nos secasse o rio que dos rostos

nos colos das manhãs ainda caem

e nos desdobrasse as asas

da sua vida


Rui Miguel Duarte

04/09/10

SIMÃO DE CIRENE


“Quando o levavam, obrigaram um homem de Cirene chamado Simão, que vinha do campo, a carregar a cruz de Jesus às costas e a seguir atrás dele.”

Evangelho de Lucas 23,26 (versão A Bíblia para todos)


Simples homem da terra,

tisnado e áspero como os bois

irmãos do arado


o teu braço,

que antes se habituara

a quebrar na enxada

outro braço agora, de soldado

amante de sangue

ignorante das tuas horas

nesta hora ignaro

de demente vingança

prende e esmaga


braço por braço

ombro por ombro

sobre as tuas costas

faz poisar o peso de pena

de um condenado


abate-se a canga do céu

despojado de estrelas

a cruz toda do mundo


RUI MIGUEL DUARTE

29/08/10

segunda-feira, agosto 23, 2010

ODE LUNAR


Que encolhes, Lua

— dizem —

que quanta eras cessaste

de o ser

vêem-te estiolar


muito te pediram e tiraram,


Lua,


sob o teu candelabro se enlaçaram

os namorados, e juraram

que a eternidade

seria o prolongamento do beijo,


ó Lua alcoviteira


com o teu beneplácito de deusa

enlouqueceram os uivos dos lobos

as noites das aldeias,

e viram-se dos túmulos

redespertarem os mortos,

mas só nessas horas do teu reinado

efémero na noite, efémero

mas que deixava

nos ouvidos e nos olhos

o rumor do terror

que a aurora não dissipava,


ó Lua pantomineira


também te derramaste cheia

dentro do caldeirão da rainha bruxa

na preparação do molho agridoce

para embeber o pomo

que jugularia a vida de Branca de Neve,


ó Lua feiticeira


em ti requestaram inspiração

os poetas

com os teus segredos mancharam a folha

e organizaram a tinta,


ó Lua paroleira


a tua pele violentou

de um pequeno salto Neil Armstrong

sem que em ti achasse

nem no teu ventre gerasse

selenitas

filhos que te adornassem a velhice,


ó Lua solteira


tanto te pediram e extorquiram

estes terráqueos, mas sei triste

que nada te deram

que te não acalentaram

o coração


talvez por isso

arrefecida

— como dizem —

talvez por isso assim

desnudada

murches


21/08/10


A propósito de uma notícia segundo a qual a Lua está a encolher.

domingo, agosto 15, 2010

RACIONALIDADE DO ATEÍSMO

Antes de os meus amigos cristãos me apedrejarem, esclareço que este título não representa propriamente uma concordância com um tal axioma. Pode designar apenas o assunto do presente texto, e que o autor, cristão, se pretende discutir. No entanto, sempre o autor pode admitir que mesmo nos antípodas, no ateísmo, há racionalidade. E também pode avançar duas restrições: embora assim admita, não há toda a racionalidade da parte dos ateus nem eles sempre são racionais, nem a racionalidade esgota todas as possibilidades de compreensão do mundo e o discurso sobre a mesma.
Esta reflexão prende-se com a natureza do Homem. A verdade é mais do que uma vez, quer através de conversas pessoais, quer de leituras em oblíquo em páginas na internet, se lhe deparou a contestação ateísta à alegada da criação do Homem por Deus, como sua imagem e semelhança, como defende o Cristianismo e está exarado na Bíblia. Em contrapartida, o Homem seria mesmo o pior, a coisinha mais ruim da criação. Ora, o autor subscreve por inteiro esta afirmação. E acrescenta que tal noção está igualmente na Bíblia. Ora, se os ateus não a lêem, ou só o fazem para nela provarem que não há Deus e que ela é um armazém confuso de contradições, o autor destas linhas pergunta onde terão achado esta ideia. Se a têm, é bom, mostra que, ao menos neste domínio, têm boa intuição. E acabam por dar razão à Bíblia, na qual não crêem e a qual não passa de uma amálgama de historietas e fábulas. Como?
É que nesta, pese embora se declare que o Homem é efectivamente imagem e semelhança de Deus, é-o não para o alçar a um pedestal de ídolo a honrar, mas porque essa foi a determinação divina, uma prerrogativa do Seu arbítrio que assim decidiu honrar a criatura. A glória é pois do Criador e não desta. E mais ainda: esse livro da carochinha é tudo menos meigo com essa criatura hedionda. Chama-lhe caída, corrupta, má, egoísta, inimiga de Deus, merecedora de ira e castigo divinos, e outros mimos. Embora seja preciosa aos olhos de Deus, porque criada por Ele. Como uma obra de arte é preciosa ao artista que a fez.

Temos, pois, que esses ateus querem ser humanistas: o homem como centro, acima de todas as coisas e medida de todas a coisas, das que são enquanto são e das que não enquanto não são, segundo o axioma do sofista Protágoras de Céos. O Humanismo (ou o Humanismo secular, como lhe chamam) é a sua doutrina. E isto suscita ao autor destas linhas uma questão, que ele tem de colocar, pois é inevitável, embora pedindo licença para o fazer, não vá ofender a laicidade que todos devemos confessar: se o Homem é a pior coisinha da Terra, como pode haver um Humanismo e ser essa nefasta criatura a medida de todas coisas? E outra pergunta ainda, partindo da mesma premissa: se o Homem é a pior coisinha da Terra, não estão incluídos os próprios ateus? Pois silogisticamente é necessário concluir que, sendo os ateus igualmente homens, são eles mesmos uns bichos peçonhentos. E o autor, sendo homem, também o é, coisa que ele, crendo na Bíblia, assume à partida. Nesse caso — outra pergunta, é incontornável — não será melhor esses ateus humanistas suicidarem-se? O que seria um sacrifício altruísta para bem de todas as demais criaturas e da Mãe Natureza (uma divindade adorada pelos ateus?), pois assim livrariam a Terra da sua peçonha.

Chegam ao ponto, esses ateus, de trocar a expressão optativa "se Deus quiser", por outra, mais humanista e ateia, "se eu quiser". Não por temor religioso, o autor destas linhas permite-se ao menos invocar a mais elementar razoabilidade. Pois ninguém, ateu ou religioso, pode dizer: "Amanhã vou à bola, se eu quiser". Pois nenhuma cabeça, religiosa ou empedernidamente, está livre de que ao sair de casa lhe suceda como ao George Clooney, e que um piado vindo do 3.º andar lhe caia em cima!

O Humanismo secular é pois um sucedâneo mal amanhado, na opinião modesta mas correcta do autor destas linhas. Ele prefere o Humanismo clássico, cristão, classicista, que frutos muitos mais doces, intelectuais e literários, deixou.

sexta-feira, agosto 13, 2010

O NEGATIVO DO PENSAMENTO E CONFISSÃO POSITIVOS

O pensamento e a confissão positivos não são assim tão positivos no que respeita aos seus efeitos. E o que importa é alicerçar o sistema de crenças do indivíduo, do que na repetição de frases ocas — dizem estudos.

sexta-feira, agosto 06, 2010

PROFECIA SOBRE PORTUGAL


“Eu vi a Cristo num país de assombro
onde rapazes proclamam alto o Teu nome”
Ruy Cinatti, “Fezada”

Eu vi a Cristo num país de assombro
onde rapazes proclamam alto o Teu nome,
num país longínquo de cor e escombro.
Um país em que os homens pasmam de fome.

Esse é um país em que os rapazes na rua
encostam as rodas das bicicletas às valas
e descalçam os pés na lua.
Uma terra de coxos sem bengalas.

É um país cujos velhos
carregam sobre o dorso a humilhação
sem relhos nem trabelhos
de poupar à crise os escaravelhos.

Vi a Cristo nos olhos claros de um amigo,
dando às bocas a água copo a copo
e aos ventres grão a grão o trigo.
País de povo delapidado a martelo e escopro.

Vi a Cristo nas mãos crespas dos Seus seguidores,
curando as feridas de viúvas e grávidas,
abertas por abutres vestidos de Senhores.
É um país de estrondo, reanimado nas praias impávidas.

5/08/2010

sábado, julho 31, 2010

A MOSCA


“no seu peito insuflou a coragem da mosca”
Ilíada 17.570

A águia não apanha moscas
— pois não, nem a poesia
não sabias? não haverá método mais prosaico?
mais indolor?
a mosca, cuja coragem foi outrora clonada no peito de Menelau

ah se tivesse aqui o Luciano — não o meu pai,
o outro, o de Samósata,
pedia-lhe ao menos um discurso
um arrebatado elogio
e um culto e rebuscado encómio
talvez conseguisse comover a sua inteligência
e apelar ao seu bom senso
mas o bicho danado, estúpida filha
de uma… mosca parideira
não deixa de importunar o condutor
de lhe zumbir o ângulo de visão
e lhe volitar à roda da cabeça, penetrar nos ouvidos
e na esfera dos olhos,
de lhe debicar a pele
e o condutor lá tem de descolar as mãos do volante
para atender às solicitações da fulana
pária da vida, invasora dos habitáculos alheios

— Bem, se não temos o Luciano,
temos o Parreira — intervém a Cristina
como é belo o senso prático das mulheres quando é preciso —
se não vai lá com discursos de prosa
dá-se outra estética,
a da mão que brande os versos e mede o livro
uma pancada de metáforas bem escandidas
e já era!

28/07/10

segunda-feira, julho 26, 2010

SUBIDA AO SINAI

Ao subir ao monte
subo de dorso curvado
e olhar arrastando
no chão

o coração ainda se ergue
para o pico
mas o peso da convocação de Deus
a massa ingente da profecia por nascer
acabrunha o próprio ar
que respiro

sarça que arde nos pés
sobre a delicadeza sagrada
da terra,
temo apenas rasgá-la
por isso o meu dorso
pesado sem asas
e carente dum mistério duma voz duma palavra
que o salve
vai curvado

e sobe

20/07/10

terça-feira, julho 13, 2010

MEDITAÇÃO SOBRE O SALMO 93


“A selvagem exalação das ondas”
Sophia de Mello Breyner Andresen, “O Mar”

A selvagem exalação das ondas
subindo aos astros é mais possante
do que eu

o exaltado rugido do tropel das águas
abre mais a boca escura aos céus
do que o clamor cavo
da minha alma

o estampido excessivamente rouco
do seu chicote
flagelando os penhascos
consomem o ar que respiro
e desmantelam o chão que piso

Mas o Senhor nas alturas, forte e grandioso
no Seu trono
é mais levantado do que todas as águas
o fragor da Sua voz
mais sonora de eternidade
e escora-me o mundo sob os pés

é então que
toda a minha vacilação diluída
nas ondas se esvai, e todo o sobressalto
recolhe à vazante

é então que
a voz do Senhor acima dos céus, forte e grandioso
no Seu trono
ensurdece esse muito ruído das marés
num estreito murmúrio de búzios

10/07/10

sábado, junho 19, 2010

DISCURSOS

“Na verdade, há discursos escritos que obtêm muito mais efeito pelo enunciado do que pelas ideias.” Aristóteles, Retórica, 3.1 1404a


Há palavras vólucres
palavras que existem nos ares
que ocupam as mesas no lugar
das chávenas de café

umas arrebatam as ideias
outras exilam-nas
e projectam-se no espaço

de silêncio e névoa que vai
dos lábios do falante
aos ouvidos do auditor

são palavras coloridas
que coroas de flores
e que abrasam
e abraçam o perímetro
todo do teu coração

18/06/10

sábado, junho 12, 2010

O MAIOR AMOR


“Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos”
Evangelho de João 15:13

Cada manhã que o dia me desperta
é uma noite mais que me adormece
o fôlego e ao peito me dá quebranto

Cada manhã que os teus olhos em orvalho me vêem
é uma noite mais que me oculta
a face por trás do véu da tua face

Cada manhã que o sol põe flores róseas nas minhas mãos
é uma noite mais que me desvenda
de todo o corpo
frutos vermelhos para o teu contentamento

10/06/10

quarta-feira, maio 26, 2010

O PIANO


“There is a silence where hath been no sound,
There is a silence where no sound may be,
In the cold grave – under the deep, deep sea”
Thomas Hood, “Silence”

Da praia cinzenta longe
guerreiro hirto contra as garras
levantadas das águas
resgatei tecla a tecla
o meu piano

No fundo denso e de lama
da floresta encontrei
a plateia para a minha tocata
e nela derramei tecla a tecla
a minha voz

Nos sinais das mãos
e no deleite dos olhares
fremente na fascinação das asas
pairando sobre a pele
nua
cativado foi tecla a tecla
o meu amor

Lá onde nunca
um assobio se ouviu
onde todo o som é impossível
lacei todas as teclas
do meu silêncio
ao frio silêncio
da funda e profunda tumba
do fundo do mar


18/05/10

TALVEZ




Talvez se eu abrir a janela ao dia
veja a noite acenar para mim
e as árvores sem mácula
estenderem pássaros
verdes

talvez deixe que o riacho
que passa indolente
no fundo da ribanceira
se projecte afinal no ar
e o beba com toda a força
da minha sede

talvez afinal eu precise
de um salto para além da rotina
do mesmo modo de versejar
e do mesmo jeito de beijar
e só precise disso mesmo:
que da noite das árvores do riacho e de ti
eu aprenda quanto mistério
há ainda em todos vós
por perscrutar

18/05/10

sábado, maio 08, 2010

Ensaio sobre a união do Corpo

Há dias, num “post” de um amigo do FaceBook, desenvolveu-se entre mim, ex-católico e ex-agnóstico e hoje tecnicamente evangélico, e outro amigo, ex-ateu e ex-convertido evangélico e actualmente católico, um debate em que de um lado e do outro se terçaram argumentos acerca dos fundamentos teológicos em que um e outro baseiam a preeminência da sua variante de Cristianismo em relação à do outro. Mal algum vem ao mundo com tais debates, simplesmente sei, por experiência, que quando a temática é religião, futebol e política, os debates têm a potencialidade intrínseca de se tornarem emocionais, porquanto mexem com a alma e com o sangue, habitam as cavernas da vida. Por outro lado, qualquer debate exige tempo e atenção dos contendores, o qual terá necessariamente de ser tomado de empréstimo a outras tarefas em agenda. Por isso, não queria prolongar muito esse debate, ainda porque, por outro lado, mais não seria do que os contendores mais não seriam do que novos avatares que, quiçá às centenas de milhar, já antes de nós o haviam tido.


O meu temor de a conversa degenerar em emocionalidade confirmou-se: o meu amigo entrou num registo de tentativa de persuasão e de conversão da minha pessoa. A frase-chave, em relação à rejeição de certos fundamentos dogmáticos caros ao catolicismo (como a primazia de Pedro, a questão da veneração ou adoração a Maria) pelos protestantes e evangélicos, foi: “Porque não aceitais?” Mais adiante, o meu amigo ousou dizer que, se eu lesse o que ele leu e pesquisasse o que ele pesquisasse, não continuaria a ser protestante por muito tempo. Pois era precisamente isso que eu queria evitar. Na minha infância de cristão nascido de novo, eu gostava desses debates, vibrava com a pesquisa das razões espirituais, históricas e escriturísticas que assistem à fé cristã e, convencido da pertinência das mesmas e animado de um espírito de missão e de fogo glossolálico pentecostal, partia à evangelização dos perdidos, incluindo dos católicos e dos evangélicos de outras denominações não pentecostais, pois estes últimos também andavam a perder algumas coisas importantes para terem uma vida cristã mais plena. E, em abono da verdade, não era só o entusiasmo que era grande, mas a minha facúndia e destreza dialéctica não eram modestas. Eu era uma espécie de Demóstenes evangélico. Entretanto, deixei-me disso. Infelizmente ou talvez não. Hoje não me interessa ter razão e ganhar o debate pela extenuação ou pela conversão do outro. Não me empenho em converter ninguém. Lembro-me de Jesus, e de como nem Ele, sendo a Verdade, se esforçava por converter ninguém, simplesmente ensinava, operava milagres, amava e estava com as pessoas e não lhes exigia adesão. Só com aqueles que O queriam seguir era mais exigente, por querer fazer destes mestres de vida para as gerações vindouras. E com os religiosos e leitores ávidos de teologia, esses que levam o debate teológico mais a sério do que a própria vida e tão convencidos em si mesmos da sua verdade como sendo a própria Verdade, era curto e grosso. E em seguida seguia o Seu caminho deixando-os a pensar e murmurar sozinhos. Será da idade, será das minhas experiências de vida cristã não sectária que mudei a minha atitude? Talvez por tudo isto, e estou contente com o facto. Em suma, nada tenho contra a troca de argumentos: um diz o que pensa, o outro faz o mesmo, e fica-se por aqui. Sem que um tente converter o outro. Católicos e protestantes/evangélicos já conhecem bem os argumentos dos outros. Repeti-los torna-se exercício de tautologia. E cada parte, estribada na sua convicção da sua superioridade, acaba cada parte por recorrer à argumentação pela infamação do outro: pega-se nos defeitos, contradições internas, erros e responsabilidades históricos e fealdades do outro como forma de desacreditar as suas ideias (a Inquisição, as cruzadas, o complexo imperial, o erro exegético da conexão Pedro/pedra, a veneração/adoração a Maria, o magister dixit dogmático da cúpula nos católicos, a sobrevalorização da “Tradição” a par e mesmo acima da Escritura; a não aceitação da antiguidade da noção da primazia de Pedro e da existência da igreja católica, a rejeição da honra devida à Mãe de Deus, as mais que muitas divisões teológicas e orgânicas, o desconhecimento absoluto e universal da formação do cânone e a ignorância teológica em geral, entre protestantes). Decido terminar o debate, pois tinha inquinado. A última intervenção foi desse meu amigo. Ao que ele disse eu teria com que refutar e contra-argumentar ponto por ponto. Até por uma questão de honra à minha idade, cabelos brancos, inteligência e conhecimentos, pois boa parte do que ele lera e me aconselhou a ler eu conhecia, tendo tirado conclusões distintas. E pelo que eu considerava ser um topete de alguém mais jovem do que eu, que, não tendo achado respostas às suas questões nas teologias protestante e evangélica, as teria achado na católica, tentando agora fazer um prosélito da sua confissão. Se eu tivesse prosseguido, faltando à minha promessa de me calar, não faltaria réplica a cada um dos meus argumentos. E a réplica não ficaria isenta de tréplica, e assim sucessivamente, de forma que, mesmo que cada um abandonasse a pretensão de querer converter o outro e nos cingíssemos ao plano das ideias, ainda estaríamos aqui daqui a cem anos. Eu tinha e tenho as minhas opiniões sobre os cultos, teologia, história, liturgias e alegações católicas, pelo conhecimento de décadas e de leituras, mas abstive-me e abstenho-me de dizer mais acerca do que penso. Mas como esse é peditório para o qual eu já dei e hoje o debate pelo debate, sem fim, não me interessa, calei-me. Ponto.


Mesmo antes desta conversa, tinha já em mente escrever algo que com ela se relaciona. Que essa conversa tenha ocorrido apenas confirmou a necessidade e a urgência que o meu coração recebera do Espírito de Deus nesse sentido. O que significa ser cristão? O debate pelo debate nas cartas paulinas (1.ª aos Coríntios e aos Gálatas) é designado “facciosismo”, e classificado como carnalidade. Obra humana, pois. Nada tem a ver com o zelo de Deus pela Verdade, e esta em Amor. O impulso para meditar e escrever sobre o assunto surgiu após o fim-de-semana de comunhão anual da Aliança Evangélica do Luxemburgo, há algumas semanas atrás. Presente pela segunda vez para ministrar à comunhão de igrejas o pastor norte-americano Dan Sneed. O cerne do conjunto de mensagens, como no ano passado, foi o apropriado para as circunstâncias: a unidade. Mais propriamente, foi a mensagem de sexta feira que me sugeriu o mote. Tratou-se de essencialmente de um testemunho de testemunhos. Contou que em certa ocasião estivera no Iraque a pregar para um encontro de várias igrejas cristãs. Estavam presentes católicos, protestantes, ortodoxos, igrejas de rito oriental, metodistas. Inúmeras são as diferenças teológicas, hermenêuticas e litúrgicas entre uns e outros; todavia, imperava a unidade. Todos eles, se se pronunciassem sobre as suas concepções e doutrinas, teriam pano para mangas para discutir. Mas não o faziam. Amavam-se e tinham prazer em estar juntos. Havia no entanto necessidade de perdão. Todos eles tinham pessoalmente, ou alguém na família, que tivesse sido preso, torturado, perseguido, violado. Logo, todos eles tinham necessidade de perdoar a alguém. E a pregação que Deus instruiu Dan Sneed foi o testemunho do perdão ao assassino do seu próprio filho. E o Espírito Santo levou aqueles irmãos a abraçarem-se e chorar juntos, a perdoar, adorar a Deus em conjunto e a reforçar o amor que tinham uns pelos outros. Num país de maioria muçulmana, onde imperava um regime ditatorial, é uma questão de sobrevivência.

Discutir diferenças teológicas e tentar converter o outro é estranho aos cristão dessa terra, sejam eles católicos, protestantes, ortodoxos, igrejas de rito oriental, metodistas. É carnalidade e criancice. O sinal distintivo é o amor, o prazer de estar com e em serviço do outro. E este é o verdadeiro testemunho, no Iraque e em qualquer parte do mundo. É para isto que quero trabalhar, não para converter o meu irmão à minha teologia nem para ser convertido à dele. Quem quiser contestar que contesta, mas não pode deixar de entender o que dever entendido: isto é Cristianismo.

domingo, maio 02, 2010

Vilar Formoso (para Rui Miguel Duarte)



Cais de embarque
espreitando
para lá do silêncio
da curva das linhas
os sonhos que hão-de chegar
as malas, a vida
e os olhares sonâmbulos.

Poema de J. T. Parreira

sábado, maio 01, 2010

REFLEXÃO SOBRE SER CATÓLICO

Um artigo do Pe. Anselmo Borges. Para ler e pensar Aqui

sexta-feira, abril 23, 2010

CÓDICE

Códice Amiantino, fólio 5 recto no início do Antigo Testamento:
o profeta Esdras (?) copiando as Escrituras


“Ilias et Priami regnis inimicus Ulixes
Multiplici pariter condita pelle latent”
“A Ilíada e o Ulisses, fatal para o reino de Príamo,
estão ambos compactados dentro destes muitos fólios de pele”
Marcial (poeta latino, c. 38-102 d.C.),
Epigramas XIV.184

Suspenso da mão
oferece ao ar
as asas abertas dos fólios
o dedo mais dócil
que uma pena de pomba
passa um e logo o outro
nervosamente
para não romper
os delicados
capilares da tinta

o cheiro à humidade
do dedo suado de quem o lê
mistura-se com as partículas
da respiração e os fragmentos
de pele de quem o escreveu
e esta com a pele do animal que o deu

as letras os borrões de tinta
os erros de cópia e de ditado
contêm cartas tratados e poemas
todas as velhas histórias
do mundo
que o pó sepultou

à espera
que numa ágil manhã
alguém lhes sacuda
longamente o sono
solitário do copista

23/04/10

O BAFO DE HEFESTO


Quando o deus abriu a boca
da terra arrotou uma maldição:
— Eyjafjallajökull!

não houve
quem não se apartasse
quem não deixasse aberta
uma clareira vasta de espaço
para que a indignação de Hefesto
se manifestasse
largamente

arriscado era pisar-lhe o manto
e mesmo no céu o enxofre
do bafo podre
endurecia o ar que nos é dado
respirar

e Hefesto absorto
tranquilo cachimbo
fumava

22/04/10

quinta-feira, abril 15, 2010

SEM PRESSA


“Não tenho tempo
para correr ao lado
de apressados”
Manuel Adriano Rodrigues

Não tenho tempo
para dar corda aos pés
mais além do que a simples marcha
e seguir os passos de corrida
dos que antes de baterem
com os cascos no chão
já os terão fincado
na praia do destino

Prefiro colher dum bando de aves
o voo (não as aves, pois são livres para voar)
escolho a longa menoridade dos homens
(a mais longa das criaturas de Deus)
pois há vida bastante na vida da infância

Elejo crescer sem crescer
como o bambu
estático na noite das raízes
e uma anónima madrugada
rebentar do casulo
a altura da cana

Recuso-me a adiantar a aprendizagem
de todos dos passos de valsa
a sorver o tempo de que o tempo
carece para desenhar o movimento
perfeito dos corpos no espaço

Antes quero marcar a vida
na batida lenta da areia

15/04/10