terça-feira, dezembro 23, 2014

NATAL

não é quando um homem quiser
o Natal, nem quando qualquer outro homem fizer
quantas estrelas inquietas
seriam necessárias para reconduzir
magos e poetas ao mistério do Conselheiro
na dimensão de pequenas mãos
quantos concertos de anjos
e acordes de flautas de pastores
para acompanharem
os vagidos frágeis de Deus na faringe
de um Menino, Natal

foi quando Deus quis e sonhou
que o Príncipe da Paz fosse menor
do que um rei
foi quando Deus quis que passou
pelo sonho de profetas
um Menino
o Maravilhoso coberto de panos
de linho de rejeição

que um Menino, num sopro único, nasceu
como todos os meninos, que são
o despojo da dor das suas mães

foi quando Deus encheu o tempo
foi então que a palpitação das galáxias
descansou à espreita desse momento
que é o princípio de tudo em flor

Rui Miguel Duarte
23/12/2014

quarta-feira, dezembro 17, 2014

A CIÊNCIA DOS COMEÇOS

“He was interested in roots and beginnings”
de JRR Tolkien, The Lord of the rings – The Fellowship of the Ring, Livro 1, cap. 2

interessavam-lhe os começos

conhecer que sons
foram tocados no início
que raízes
foram lançadas nos fundos
dos canais, o lugar onde pudesse
despontar o espírito, onde a terra
abra portas para a sua insinuação

escavar aonde vai o seu sonho
escavar fundo onde
até os montes nascem

esta é a ciência que cultiva:
a indagação do crepúsculo
da árvore no húmus
de toda a beleza

Rui Miguel Duarte

17/12/14

domingo, dezembro 07, 2014

DÁ-ME O TEU CORAÇÃO

"Je puis faire les rois, je puis les déposer:
Cependant de mon coeur je ne puis disposer."
Imperador Tito, em "Berenice", de Racine.

Porque me pedes o que não posso dar
nem eu posso do coração dispor
como posso dispor da ave
se mesmo o vento domino e aprisionei
só para alcançar as asas que batem?

posso fazer e desfazer reis
enlaçar e soltar os cavalos
pelos freios dos rios, das flores
extraí algoritmos, dos mastros
moldei oceanos, e ao olhar mais longe,
para o universo não hesitei em fragmentá-lo
de que mais preciso? eu sou o imperador
que clareia as noites e obscurece os meios-dias

mas ao meu coração não ponho a mão,
como posso chegar-lhe?
se a mão bate no peito, no metal
emite algum som, alguma música
este céu da ave que nem de vento carece?

não é meu, já to dei ou já o tomaste de mim
e o que tenho é só teu

Rui Miguel Duarte
05/12/14

sábado, novembro 15, 2014

CONTRA OS ACORDÕES MARCHAR MARCHAR!

Acção popular judicial contra o chamado "Acordo Ortográfico de 1990", cuja tenho a honra de ser um dos autores.
Falhada a via política, com todos os partidos com assento parlamentar em geral, com a excepção da CDU e de alguns deputados do CDS a prestarem-se à ignomínia e à persistência na ignorância, resta aos cidadãos a via judicial. Esperando que esta seja sensível à argumentação técnica e jurídica coligida e expendida, que é excelente. Participam dela alguns cidadãos conhecidos da política, da cultura, da academia, do jornalismo. Transcreve-se a notícia do Público:


"Acção judicial popular contra Acordo Ortográfico


Freitas do Amaral, Manuel Alegre, Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares são alguns dos subscritores de uma acção judicial popular contra a aplicação do Acordo Ortográfico no ensino público.
Mais de uma centena de personalidades de diversas áreas – incluindo académicos, escritores, músicos, actores e políticos de vários quadrantes – intentou, no Supremo Tribunal Administrativo, uma acção judicial popular contra a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) ao sistema de ensino público, do ensino primário ao secundário.
Manuel Alegre, Diogo Freitas do Amaral, António Arnaut, António Bagão Félix e Isabel Pires de Lima são alguns dos ex-governantes que subscrevem a acção, a par de José Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares, dos músicos António Victorino d’Almeida, João Braga, Pedro Abrunhosa, Pedro Barroso ou Rão Kyao, dos escritores Joaquim Pessoa e Teolinda Gersão, da actriz Lídia Franco ou de professores e ensaístas, como Miguel Tamen, Raul Miguel Rosado Fernandes ou o prestigiado camonista e teórico da literatura Vítor Aguiar e Silva.
A acção judicial foi patrocinada por Francisco Rodrigues Rocha, docente da Faculdade de Direito da Universidade Lisboa, e a respectiva fundamentação foi preparada a partir de pareceres jurídicos de Ivo Miguel Barroso, docente da mesma faculdade, e de Fernando Paulo Baptista, filólogo que publicou um livro em que analisa o modo como a aplicação do AO90, ao impor “a supressão arbitrária” das consoantes “c” e “p”, contribuiu para distanciar a ortografia portuguesa das principais línguas europeias, do castelhano, francês, italiano ou romeno ao inglês e alemão.
Este mesmo conjunto de pessoas interpôs também um requerimento à Procuradora-Geral da República, solicitando que o Ministério Público intente uma acção pública contra a "imposição inconstitucional" do AO90.
Duas iniciativas que se vêm somar à queixa contra o AO90 que Ivo Miguel Barroso fez chegar no final de 2001 ao Provedor de Justiça e que não teve, até ao momento, qualquer resposta.
Se a acção popular vier a obter uma decisão favorável do tribunal, a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 nos vários escalões do ensino público, do 1.º ao 12.º ano, será considerada ilegal.»"

sábado, outubro 25, 2014

UM CAFÉ EPICURISTA

um poema auto-aniversário

sentado com a água do rio por tecto
à escuta de um sabor, que me chegue
um veludo agreste talvez novo
um perfume furtado à árvore
por pássaros de passagem

assim sentado bebo um café,
com o descuido por mastro, epicurista
sapiente de muito pouco, muito menos
de contar os minutos pelo relógio
— pois nem sei se existe tempo

o café que bebo epicurista é o que tenho
de certo ou só pontos de luz que saltam
e nem sequer o café pois, epicurista, é ele que me bebe
bebe-me de rosto frio, quando
o sol deste lado se levanta à beira da dor
que passa no enlace da chávena

Rui Miguel Duarte
17/10/14

terça-feira, setembro 16, 2014

PORCO NOJENTO

“Foi pedir trabalho a um homem da região que o mandou para os seus campos guardar porcos.”
Evangelho segundo Lucas 15:15

é nojento esse porco até à
milésima casa e à milésima
geração de dias
faltam-lhe as subtilezas do alfabeto
declinado às cordas do amor, o velho
abraço à sombra escorrendo
seiva fosforescente da barba
sobram-lhe o nojo o cuspo
o beijo viscoso à procura de uma palpitação
assim nasce e cresce
o porco o nojo o cuspo a que se reduz o corpo
que a alma foi perdida lá atrás
num descaminho de má vida
disseram-lhe que podia beber o pus
pois as bolotas são dos porcos nojentos
e o pão é nosso de cada dia dos ratos
a alma foi perdida lá atrás: pergunta onde?
lá atrás há porcos que regressam ao velho
abraço à sombra que escorre
o sol

Rui Miguel Duarte
12/09/14

quarta-feira, julho 16, 2014

DEVASTAÇÃO

"And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief"
“E a árvore morte não dá abrigo, nem alívio vem do grilo”
T. S. Eliot, de "Waste Land", secção I v. 23

as árvores escondem o que há de cinza
avessas ao vulgo, ao desenfado profano
só lhes dava o sol, de manhã,
e têm frio
(quanto mais lhes dá mais frio têm)

não procures indagar para onde
te eleva o voo da locusta
para onde a mancha dos grilos
que do céu galopa sobre a terra
eles não adivinharão nada do mistério
do dia e da noite,
ou o marulhar potente do exército de pedras

só um vento vermelho
que te descascam as folhas até à solidão
até ao vazio das palavras

o que vês do alto da tua copa
é o oceano seco que tuas raízes jorram
roídas

ainda que o fruto minta, mente
o rio do olvido vem reclamar
os fardos das árvores: que dispam
os seus troncos
assim entoarás louvores à nuvem que
passa

Rui Miguel Duarte
15/07/14

terça-feira, julho 01, 2014

A FIGUEIRA

“Então Jesus exclamou: «Nunca mais ninguém coma do teu fruto!»”
Evangelho segundo Marcos 11:14
Darás fruto algum dia, ó figueira
gotas de água do fundo da tua raiz
alguma vez nascerá em ti o Verão
haverá um rasto de amor para o meu ardor?
em ti mais não escorre
do que a secura que o livor pôs
na tua mudez tens a morte por rebento
não há sol perante ti, árvore de prata,
mas um apetite de uma palavra uma só
que salve a madrugada da fome da terra
não há nada pronto mas uma vontade
de mãos cheias de sabores vivos
arrancados à conjura do vento e das sombras
porque persiste em ti o Inverno?
Rui Miguel Duarte
02/06/14

QUE PEDE UM POETA?

Quid dedicatum poscit Apollinem
vates?
"Que pede um poeta a Apolo, a quem um templo
foi dedicado?"
Horácio, Ode 1.31 vv. 1-2 (original e a tradução de Pedro Braga Falcão)

que pede um poeta a um deus?
à claridade que fala e em oculto
inspira vozes? riquezas, elevados
lugares de influência, ser senhor
de minas de ouro e prata? um avião
estacionado à porta de cada manhã

um poeta não procura ser o criador
de todas as cores, não é o sol
nem o condutor dos seus carros
não cruza os mares como
o príncipe da navegação por nos seus olhos
caberem o mundo mas não caberem os seus limites
nem a glória de imperador
lhe recobre os palácios construídos e os
por construir, não tem mármore
nas espaldas ou particular conhecimento
de escansão, os pedidos que um poeta

concebe vão para além de tudo quanto
possa prender o homem, mas só
do que o surpreende, basta-lhe
ter a língua a palpitar por uma
gota de hidromel, sem nada perguntar
são as perguntas que vêm até ele

é o que pede este poeta ao deus que queira

Rui Miguel Duarte
25/06/14

sábado, maio 03, 2014

EPODO AO SALMO 139

a J. T. Parreira, com amizade, solidariedade poética e votos de saúde


Alguém lá em cima gosta de mim
alguém lá em cima tem colo de ouro
e braços de estrelas
para os meus cansaços

posso estar no chão e os meus pés
pisarem os céus e os ínferos dos mortos
pode não sobrar de mim mais do que
a voz que grita a ocidente e a oriente
e Alguém aí está e gosta de mim

posso não ter mais do que algas podres
em vez de mãos um seixo túrgido
em vez de uma canção que se atira
contra os tremores de ventos e marés

que claro e imperceptível é
que, ao mostrar-se treva luz,
Alguém gosta de mim

Rui Miguel Duarte
03/05/14

domingo, abril 20, 2014

RELATO

“Quem acreditou naquilo que ouvimos?”
Livro do Profeta Isaías 53:1

pediram-nos uma palavra 
aberta em melodia que falasse
do drama da alegria

do seu breve trânsito pelos velhos mortos
em que foram decompostas as nossas pobrezas

pediram-nos uma memória,
quente, nova que fizessem acreditar
que a memória é símbolo e é carne

pediram-nos um relato
mais vivo e que mais fortemente
arrepiasse a espinha ao silêncio
do que o próprio evento
que contar o espinho ferisse mais
do que o espinho,
porque a mortalha dele é nossa roupa nova
para dia de festa
e o sangue dele o nosso músculo enxuto
contar quanto a pedra caiu à beira do caminho
diante do clamor das mulheres
quanto o dia em que a noite
foi apenas a preparação da manhã

o que temos é só o que ouvimos
porque Ele retornou ao Pai
deixou-nos, contadores

necessário é: para manter
os ouvidos ouvindo
e em desemparo acreditando

e nós contamos

Rui Miguel Duarte
19/04/14

quinta-feira, março 06, 2014

CONCLUSÃO

“É tempo de concluir; já tudo foi dito.”
Eclesiastes 12.4

De tudo isto a conclusão é: o sol brilha
e não deixa vivalma isenta de meio-dia
a noite consome-nos quando faz assobiar os gonzos
por trás de nós, por trás da memória

a areia devora-nos o rosto, é uma mó
que de tanto moer grão seco quebrou

o coração dissolve-se no vento
sem saber o que o leva às alturas
sem saber se há alturas ou apenas vertigem

de tudo isto, dos velhos que são fortes
curvados, do deserto em que não entrámos
que perdemos na ilusão de ser mar mas que entra
por nós dentro, e nos traga as mãos
ao tanto escorrer

de tudo isto a conclusão
é afinal irrefragável:
teme ao Senhor ama os preceitos dum Pai
a eternidade que são
todas as horas da tua vida de homem,
esta é a tua condição, esta é a tua conclusão

Rui Miguel Duarte
06/03/14

terça-feira, fevereiro 25, 2014

Língua Portuguesa: a hora da esperança

Os deputados não serão indiferentes à ideia de seus filhos e netos, e todos os portugueses, se tornarem deficientes linguísticos ad aeternum

Neste fulgor baço da terra/ que é Portugal a entristecer/ – é a Hora!
Fernando Pessoa

Elsa Triolet, esposa do poeta Aragon, escritora também, deu um lindo e especioso título a um romance seu, em português Rosas a Prestações. Seguindo a sua lógica de maravilhoso a conta-gotas, pode também falar-se de esperança neste nosso tempo de desespero. Não da esperança económica, que talvez se fique por ganhos empresariais e subidas da palavra Portugal em gráficos de Mercados. Nem do viver melhor, para a maioria, que se limitará a ler a notícia disso nos jornais.
Mas, se para alguma coisa serviu o 25 de Abril (neste 40.º aniversário próximo, frisarei: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”), foi para instaurar a democracia entre nós e, com ela, a possibilidade de pensar livremente, criticar, reconsiderar: para amparar e reconstruir o país. Agora, em ruína… a precisar de tanto amparo. A precisar de clarividência e isenção.
Mas pensar e criticar faz-se com palavras, com linguagem, com uma formação profissional prática e teórica, que se enriquece com a cultura de cada um, feita de aprendizagem do quotidiano, da vivência própria do indivíduo, tendo por base a escola, educação, exercício profissional, experiência de cultura e arte, exercício da cidadania. As palavras são manancial de riqueza: juntam a criatividade de “crescer” em diversos sentidos, a partir das suas raízes fortes, em lógica de desenvolvimento que é tanto delas mesmas como dos que as usam, quando respeitam o seu étimo. E reúnem-se na família vocabular que é a Língua: o Português, cujas raízes estão no Latim e no Grego, beneficiando de outras línguas no seu convívio. São como um chão em que nos movimentamos, tanto quanto um firmamento de sonho, que em nós suscita desejos e projectos, leva a sucessos e invenções. Quase sem darmos por elas, como nos entenderíamos sem palavras fortes, não dúbias e bem definidas?
Ora já sabemos como o chamado Acordo Ortográfico as veio maltratar, como as cortou das raízes da sua proveniência, como lhes decepou ligações de vizinhança com línguas europeias. E antevemos vários cortes de raciocínio (o raciocínio que leva à acção concertada!) a que tal conduz. Reencaminhamo-nos, assim, para o “orgulhosamente sós” de Salazar e, mais do que sós, ficamos decepados. Com a desculpa que a ortografia não é a língua (como se ela não fosse parte integrante da língua, como a pele que cobre o corpo!), o Acordo Ortográfico desfigura a linguagem: desmembra famílias de palavras, estraçalha vocábulos (que parecem outros, com os quais os falantes os confundem), isola termos que ficam lexicalmente à deriva, num oceano de incongruências, arbitrariedades, confusões, deslocalização do sentido original, que já não é possível perceber para se atinar de imediato com o sentido. Um desatino!
Ficámos aleijados a escrever em português. Por determinação da lei que impôs o Acordo Ortográfico como medida política de aproximação com os países de língua oficial portuguesa. Os quais, afinal, enjeitam tal medida, pois não o adoptaram! E aleijados também porque ninguém entre nós sabe escrever segundo o Acordo, tão impossível de fixar ele é, ilógico nas suas regras, infinidade de excepções e hipóteses de escrita múltipla. Não se consegue fixá-las, é preciso decorar o que está correcto e o que não está! Não há hoje quem saiba escrever em Portugal segundo o Acordo: escrevem os correctores automáticos (ditadores mecânicos da linguagem que “faz” cultura: como Deus a fazer um “pato” com o Diabo, num livro de Saramago; como a locutora da TV que lança um “réto” (“repto” quis ela dizer, e não “recto”) ou como o aluno que, lendo sobre “a Imaculada Conceção”, passa a escrito como “Imaculada Concessão” – exemplos sem fim, que parecem anedota, se é que tudo isto o não é… Por uma vez, as piadas deixam de fazer rir em Portugal, pois é o ser humano, física e mentalmente, que o Acordo Ortográfico agride, já que a saúde do indivíduo reside também na sua fala e poder de escrita, e ambas se interpenetram.
Não vale a pena exibir mais agravos do Acordo Ortográfico: as críticas que lhe têm sido feitas chegam e sobejam para entendermos o seu alcance de danificação, em expressão e raciocínio, a curto prazo (e já actual!), no falante luso. E as implicações a vir na descida do nosso nível cultural, profissional e económico, no futuro. É uma amputação! Quem aprovou a lei não o supunha, talvez. Embora tenha havido claros pareceres e advertências, na altura devida – e os responsáveis fizeram, no sentido mais próprio, ouvidos de mercador.
Mas ainda é tempo! A Assembleia da República que aprovou esse instrumento de atraso mental não é hoje a mesma, e os que nela permanecem, do grupo anterior, tiveram entretanto ensejo de reflectir, de compreender. Tenhamos esperança! Os portugueses que formam esta AR podem mostrar-se cidadãos responsáveis, que não querem depender, durante o resto da vida, de conversores automáticos colocados em computadores, os quais ainda por cima erram na aplicação do próprio Acordo, e o resultado é que não se fica a escrever nem em Português nem na ortografia imposta…, escreve-se em língua que não existe, não é a da lei, nem a usual! Os deputados não serão indiferentes à ideia de seus filhos e netos, e todos os portugueses, se tornarem deficientes linguísticos ad aeternum, com os custos que isso acarretará, em atraso e marginalidade decorrente, para Portugal. “Medida política”, isto?!
Tal medida, impensadamente aprovada em 2008, que desfigura a fisionomia do Português, vai ser reexaminada na Assembleia da República no próximo dia 28, graças a mais uma Petição de cidadãos que pretendem desvincular-se do Acordo Ortográfico, recebida por este órgão de soberania. Esse pode ser um dia de efectiva recuperação para o nosso país, e o 28 de Fevereiro ser data marcante da democracia, como efectiva participação do povo na res publica! A esperança é a última a morrer? Talvez, mas… quem espera sempre alcança. Em Rosas a Prestações, as heroínas, jovens raparigas belas, ambiciosas e ignorantes, deitaram tudo a perder. Porque a sua esperança se apoiava em gestos de exibição social, aparência física de vazio interior e relações de interesse… e tudo isso, se não tem linguagem segura a apoiar o indivíduo e a torná-lo gente, estilhaça-se. Esse é um romance que foca a falência humana pela incapacidade da linguagem na comunicação. Mas a vida não é um romance, e, em democracia, o decisor é o povo, pelos seus representantes. Haja, pois, confiança!
Centro de Estudos Comparatistas – FLUL

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

O ÚLTIMO CÁLICE

até amanhã
já me basta o vinho de hoje
o mal de cada dia que vem a nós

só o vinho o novo e o velho
de cada hora

até amanhã 
quando às estrelas
forem cortados os ventres das uvas

até amanhã
lá no meu Reino
lembrai-vos de mim

Rui Miguel Duarte
18/02/14

segunda-feira, janeiro 27, 2014

JUSTAMENTE

JUSTAMENTE

“… e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura…”
Mário Cesariny, “Uma certa quantidade”


justamente — dizes
são os poetas, os que caem e vêm à procura
em cada pedra o sol
gente, pássaros de regresso ao Norte
do que já não precisamos, do que já temos

a pólvora, a gente, a agitação das ondas
a perturbação da areia
a fugir

justamente — dizes
são os poetas, os que aparecem de repente
quando já
não eram requeridos,
quando já
foram, estão substituídos
quando já a comida tem sal
que chegue, mas para que precisamos do sal
afinal, se nem temos o vinho?

justamente — dizes
são os poetas, os que doem
e fingem aqui e acolá, que não
cantam, mas emitem pássaros
que cantam por eles


quando já não são precisos
quando são poetas

Rui Miguel Duarte


23/01/13

Publicado ineditamente em Poeta Salutor

sexta-feira, janeiro 17, 2014

Acordo Ortográfico: das fraudes de uma missiva

Transcrição do artigo publicado no Público de 16 de Janeiro de 2014

“Atenienses, de quão grandes têm sido as diligências e as manobras partidárias em torno do presente debate, suponho bem que quase todos já vos tendes apercebido, ao verdes ainda agora aqueles que, quando eram os vossos nomes escrutinados, vos vieram perturbar e assediar. Pedir-vos-ei, a todos vós, aquilo que é justo colocar ao dispor mesmo de quem o não pede: que não tenhais em maior apreciação nem o favor nem o factor pessoal do que a justiça e o juramento que cada um de vós pronunciou ao entrar neste lugar.”
Demóstenes, Discurso sobre a embaixada fraudulenta, 19.1 (proémio)

Estava agendada, para o passado dia 20 de Dezembro, para plenário na Assembleia da República a apreciação da Petição n.º 259/XII/2 “Pela desvinculação de Portugal do ‘Acordo Ortográfico’ de 1990”. Na véspera, foi a apreciação cancelada, a pedido dos Deputados José Ribeiro e Castro e Michael Seufert (CDS), que apresentaram na mesma data, em conjunto com o Deputado João B. Mota Amaral (PSD-A) um projecto de resolução n.º 890/XII/3.ª. Este projecto recomenda ao Governo a criação urgente de um Grupo de Trabalho sobre a Aplicação do Acordo Ortográfico. O propósito é de fazer acompanhar a apreciação da Petição (que fica adiada, faltando agendar nova data) de uma iniciativa que force os Deputados a pronunciar-se por meio de votação, porquanto a mera apreciação de uma Petição não implica votação, tornando-se ineficaz jurídica e legislativamente.
No mesmo dia, envia o Director Executivo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), sediado na Praia, Cabo Verde, o Doutor Gilvan Müller de Oliveira, uma carta aos Deputados (alojada aqui: http://www.ciberduvidas.com/acordo.php?rid=2850). Basicamente, a carta procura contestar alguns fundamentos da Petição e os Peticionários que a elaboraram, de modo a influenciar a decisão dos Deputados. Manobra de assédio político exterior na relação que um órgão de soberania do nosso país deve manter com os seus cidadãos, ao caber-lhe o mister de apreciar uma petição subscrita por milhares destes?
Como peticionários, admitimos o contraditório, que o IILP é parte interessada e vamos a jogo, com destemor. Nada devemos. Já a carta muito deve. É um exercício falacioso, frustre e fraudulento. A carta padece toda ela de inúmeros erros, vários deles crassos. A argumentação expõe dados falsos, generalizações rápidas sem a devida atenção aos factos e sem a imprescindível actualização da informação.A carta é um exercício a que nenhum académico se pode prestar, sob pena de constituir um defeito curricular maior.
Praticamente tudo quanto é nela alegado está a priori refutado na Petição, seu anexo e pareceres adjuntos. Todavia, porque os Peticionários têm um sentido mínimo da seriedade e competência científica e jurídica, decidiram responder à carta ponto por ponto, com extensa argumentação e documentação, tendo enviado o todo para os Srs. Deputados. Deter-nos-emos aqui num único ponto da carta. Tal permitirá perceber quão arenosos são os fundamentos desta.
Reza assim o ponto 1 da carta:
"Os dois professores brasileiros que estiveram em Portugal não são "representantes do Senado", como se tem tentado fazer crer em alguma imprensa. São dois cidadãos individuais, ligados a iniciativas privadas (sobretudo do ensino), que foram ouvidos por uma comissão no Senado Brasileiro no âmbito de uma sua proposta de revisão radical da ortografia portuguesa e enviados a Portugal para conhecerem a situação no país quanto à aplicação do Acordo Ortográfico."
Os Professores Ernani Pimentel e Pasquale Cipro Neto (os dois cidadãos referidos), representantes do Grupo de Trabalho Técnico do Senado Federal da República Federativa do Brasil (GTT), criado no âmbito da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, foram recebidos em audiência conjunta das 8.ª e 2.ª Comissões da AR (respectivamente, de Educação, Ciência e Cultura e dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas) no passado dia 27 de Novembro (cf. gravação áudio emhttp://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudiencia.aspx?BID=96404). Na segunda parte da audiência, de carácter técnico e destinada aos Deputados do ex-GTAAAO, os Professores fizeram críticas contundentes ao Acordo Ortográfico e apresentaram, por intermédio de Ernâni Pimentel, as linhas gerais de uma proposta de simplificação deste acordo. Pretendem levar a proposta aos responsáveis políticos e académicos dos países lusófonos com vista à recolha de contributos para essa simplificação, a serem congregados no Seminário Internacional Linguístico-Ortográfico da Língua Portuguesa, promovido pela Academia de Letras de Brasília, no próximo dia 10 de Setembro. Até Outubro, os participantes de cada país lusófono levariam às respectivas autoridades competentes a mesma proposta geral, como subsídio para implantação das simplificações.
O que daqui resultou é claro e nunca é demais repeti-lo (retomando o que foi exposto em escrito anterior, como balanço da audiência aos Professores brasileiros): o ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990 MORREU. MORREU NO BRASIL.
Na nossa resposta ficou cabalmente provado que estes dois Professores são representantes do senado. Ora, o Presidente da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, Senador Cyro Miranda, enviara, a 19 de Novembro, uma carta ao Presidente da 8.ª Comissão, Deputado Abel Baptista (CDS), recomendando os Professores brasileiros.
Esta carta (cuja cópia nos foi gentilmente fornecida pela Secretaria da Presidência da referida Comissão do Senado brasileiro da República, por correio electrónico, e que anexámos à documentação enviada, pela mesma via, aos Srs. Deputados) é a prova acabada da autoridade com que foram recebidos na Assembleia da República.
Citamos os parágrafos 6 a 8, suficientemente eloquentes a este título.
"6. Com o intuito de colaborarmos com o aperfeiçoamento e simplificação do complexo acordo, o plenário da Comissão aprovou a criação de um grupo de trabalho técnico (GTT) destinado a colaborar subsídios e contribuições assim como consultar e auscultar os segmentos envolvidos no Brasil e nos demais países. Ao fim de um ano a intenção é propor um documento com sugestões ao texto já conhecido.
7. Em virtude do exposto, solicito ao eminente Presidente da Comissão Co-irmã, o apoio necessário aos ilustres professores, Ernâni Pimentel e Pasquale Cipro Neto (Coordenadores do Grupo Técnico) para as conversações a serem desenvolvidas por ambos os especialistas, entidades e outros interessados em contribuir com o Acordo Ortográfico.
8. Aproveito para submeter a vossa análise a sugestão de reunir nossas Comissões conjuntamente, ou representantes designados, no Brasil e em Portugal, para avaliarmos o andamento do Acordo Ortográfico.”
Fica manifesto que estes Professores brasileiros foram recebidos na Assembleia da República no exercício do cargo de Coordenadores do GTT de uma Comissão senatorial, com uma missão oficial bem definida. Diversamente do que o Doutor Gilvan de Oliveira assevera, não se trata de informação errónea “de alguma imprensa”, nem os “Ilustres professores” seus compatriotas foram a Lisboa enquanto “cidadãos individuais”. É possível ser mais claro?
É urgente, aquando da discussão da Petição em Plenário, que os Deputados apresentem um Projecto de Resolução que suspenda a aplicação do AO90 no nosso País; ou que, no mínimo, recomende que se retire de circulação o conversor “Lince”, produzido pelo ILTEC, por, como já foi demonstrado, violar o AO90.
Doutorado em Literatura, Investigador do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, poeta

sábado, janeiro 04, 2014

Nos jardins da Babilónia

aprendi a língua da Babilónia
a língua que falam 
as árvores 
                   da glória 
aprendi como os jardins se levantam
                   e abraçam o zigurate
aprendi a moldar a lama 
                   e dar-lhe a candura do rio

aprendi a língua da Babilónia
a língua que cantam 
sonhos estátuas duras
                   de profecia

aprendi que o vinho existe
e que se degusta antes de o dia 
                   ter espessura
que se bebe de janela aberta
                   só

aprendi 
onde as ruas
                   se cruzam
com masmorras as vozes que denunciam
que o banquete dos aromas
                   vai começar

aprendi e depressa desaprendi
o que tem a Babilónia para eu lhe ensinar?


Rui Miguel Duarte
31/12/13