sábado, novembro 21, 2009

NEGAÇÃO

James Tissot (pintor francês 1836-1902)
Brooklyn Museum Robert E. Blum Gallery


“«Olha, Pedro», avisou-o Jesus, «não cantará hoje o galo sem que me tenhas negado três vezes»” Lucas 22:34 A Bíblia para todos, p. 2094

Antes de o galo acordar o sol
antes mesmo de a aurora multiplicar rosas
ouvir-se-á o murmúrio das vozes
no pátio
e ao vento uma palavra não soprada

O coração esconderá a vergonha
lançá-la-á ao crepitar da fogueira
acesa para aquecer corpos
consumir fadigas e tristezas
mas o ardor de um coração culpado
fogo nenhum extingue
antes mais o inflama

O seu rosto será familiar
cuspido e escarrado
alguém o terá visto
o braço direito desse Rei

E ao vento uma palavra não balbuciada

Sentados na roda dos coscuvilheiros,
os olhos mirarão o homem
de fronte suada de desassossego e fuga
As vozes certificarão o que ele preferirá ignorar
terá sido um desses que terão partilhado a mesa com o Galileu
e que tentará então com a aba do manto
manter o anonimato

As vozes darão carne à sombra que ele ansiará
por abandonar numa esquina

Mas fugirá o descanso desse coração incerto
pois ao vento uma palavra NÃO será protestada

E será este protesto quem acordará o galo,
que então se lembrará que será a hora

Outros olhos então pousarão nos seus
os olhos condoídos do Mestre
que lhe atravessarão a couraça da alma

E na esquina onde se quis esquecer
será aquela em que se reencontrará
no espelho das lágrimas: ainda que a voz minta
estas só sabem dizer a verdade
e desconhecem a palavra
NÃO

20/11/09

quinta-feira, novembro 19, 2009

NO HELESPONTO, XERXES




“Assim que viu o Helesponto inteiro recoberto de navios, todas as suas margens e as planícies de Abidos cheias dos seus homens, Xerxes considerou-se a si próprio afortunado, mas em seguida chorou.”
Heródoto, Histórias VII, 45


Do alto do meu trono
o meu olhar voa de mim
e entrelaça as duas margens
desta passagem
do Helesponto para a Hélade,
pequena janela que se abre imensa
para a promessa de glória

O meu olhar plana então
sobre estas plagas e campinas
atapetadas de milhões de navios cavalos e homens
que, pintados de todas as nações da Ásia e do Egipto
e estampados do brilho do aço das armas,
eriçam os estandartes em saudação à minha glória
à glória do Divino Príncipe da Pérsia

De dentro da voz de júbilo
decreto que eu, Xerxes, sou mais do que abençoado

Mas para além de até aonde pode o olhar adejar
não descortino toda a terra, nem possuo todo o mar
Há um aviso um arrepio um pio de pássaro

O meu olhar foi finalmente visto
regressar à sua morada e decantar em lágrimas
este estreito tão estreito que me aperta a traqueia

Pois não há reis
que ocasionalmente se não prostrem
à enfermidade e à dor
também eles contam a terra e as pedras
com que têm coberto os seus amados
Rompendo a janela da minha glória
o meu olhar abre a porta da vertigem
mais funestamente desejada do que todo o ouro
a vertigem altaneira
da morte

No meu espírito fala
uma voz dalém das orlas do tempo
Lê um epitáfio inscrito num mausoléu:
“Aqui jaz Xerxes da Pérsia Rei dos reis
no Olimpo anelou o Hades
foi a primeira flor nascida da Primavera
por mão ceifada em pleno Verão
conquistador da terra
hoje servo debaixo dela.”

E prossegue:
“Cem anos e destes milhões
só se contarão as areias das praias
serão meros pontilhados numa tela
tinta fresca na pena de um contador de histórias.”

12/11/09

Publicado ineditamente em Poeta Salutor, por gentileza do poeta J. T. Parreira

domingo, novembro 15, 2009

EXISTIR

Existir, segundo o significado etimológico da palavra, é estar fora de nós próprios, ex-sistere.

Há pessoas que são como planetas que só conhecem movimentos de rotação: entra dia e sai dia e o mundo delas revolve-se num entediante movimento centrípeto, sempre e somente em torno de si próprias. Pessoas egoístas, possessivas, excessivamente centradas em si próprias e nos seus interesses, não existem realmente. Não conseguem sair delas próprias. São como rosas que nunca abrem, fontes que nunca nascem, estrelas que nunca brilham. Não participam das mil e uma vidas que existem fora delas – mais, para elas não existem outras vidas, só a sua.

Existir, ex-sistere, implica sair de si próprio! E o maior êxodo é aquele que é feito para fora de si mesmo.

Sair de si próprio provoca um descentramento. O centro geométrico muda à medida que o outro começa a ocupar a sua atenção: começa a dar-se, a repartir-se, a semear-se nos outros. O grão de trigo, se não morrer fica só; mas se morrer, se sair de si próprio, passa a existir como pão que alimenta

Sair de si próprio implica arriscar – arriscar-se a sair para um mundo-outro onde nada é costumeiro, habitual, familiar. Enquanto permanecer no útero em que foi concebido – esse seu habitat natural em que a vida se foi desenrolando – nunca conhecerá outros desafios e novas dimensões de vida. As novas harmonias já foram dissonâncias; as novas descobertas já foram impossibilidades; as novas ideias já foram silêncios; o romance e a poesia já foram páginas em branco. Há que arriscar!

Sair de si próprio faz aumentar o horizonte de esperança. A vida deixa de estar limitada aos nossos poucos recursos e à nossa pequena dimensão. O nosso horizonte de esperança aumenta ao percebermos que existem outras ideias, outros dons, outros contributos, outros sonhos que fazem o mundo avançar e pular.

O maior desafio da vida é existir.


sexta-feira, novembro 13, 2009

ROBERT ENKE (1977-2009)


O Outono vestia-se de chuva e alguma neblina
era o cenário indicado para dar
ao silêncio o devido descanso

Pendura literalmente as chuteiras lavadas
deixa a carta à mulher com um beijo
sobre a mesinha baixa da sala,
essa em que dispuseram tantas angústias

Dedilha os cabelos da pequenina Leila
e o pêlo de um dos seus cães

Conduz o carro o derradeiro quilómetro
até onde a via férrea era recta
pois assim o comboio passaria
à velocidade máxima
sem haver como errar
a colhida

Alinha-se na baliza das linhas
oferece ao silêncio um segundo
de domínio, um só
De braços abertos
na postura do guarda-redes
para receber a bola de luzes e aço
o último penalti que não defenderia

13/11/09

quinta-feira, novembro 12, 2009

O CHORO DO REI


Assim que viu o Helesponto inteiro recoberto de navios, todas as suas margens e as planícies de Abidos cheias dos seus homens, Xerxes considerou-se a si próprio afortunado, mas em seguida chorou. Ao aperceber-se disso, Artábano, seu tio paterno, aquele que anteriormente exprimira livremente a opinião de que não era recomendável marchar contra a Grécia, esse homem, ao notar que Xerxes chorava, disse-lhe: «Ó Rei, quão díspar é a tua atitude de agora e a de há muito pouco! Primeiro, declaras-te a ti próprio afortunado, agora choras!» «É que me veio à mente – disse ele – lamentar a brevidade de toda a vida humana, pois, dentre toda esta grande multidão de homens que aqui estão, dentro de cem anos, nem um único sobreviverá.»

Heródoto, Histórias VII, 45-46

Xerxes, rei da Pérsia (entre 485 e 465 a.C.). É o Assuero do livro bíblico de Ester. Como todos os monarcas do imenso império persa, era designado "Rei dos Reis" (Shāhanshāh).

Dario o Grande, seu pai, falhara a invasão da Grécia (derrota em Maratona em 490), mas Xerxes decidiu continuar. Heródoto relata como esse rei orgulhoso, para passar o estreito do Helesponto (actual Dardanelos), manda construir pontes. Uma tempestade destrói-as, e o Rei, irado, manda executar os responsáveis pelas obras e, pior ainda, castigar o próprio mar. O castigo consistiu em repreendê-lo, dar-lhe trezentas chicotadas, lançar às suas águas duas penas e marcá-lo com ferros em brasa.

No auge do orgulho e da glória, ao contemplar as multidões dos seus exércitos e hostes de mercenários múlti-étnicos, deixa-se tocar por um sentimento de trágico próprio do pensamento grego. Lembra-se de que é um mero ser humano e chora, pensando que ele e os seus homens, enquanto humanos, têm uma curta vida. Artábano, seu tio paterno, que o aconselhara a não marchar contra a Grécia, vê-o chorar, e tem com o rei um diálogo sobre a vida humana, as calamidades que a atingem e o desejo que a todos num ou noutro momento toca de preferir a morte à dor de viver.

Morreria assassinado às mãos deste mesmo tio materno.

Não discuto aqui até que ponto há no episódio e no diálogo história, lenda, retoque literário dado por um espírito em várias ocasiões preocupado em transmitir testemunhos. A meditação sobre o humano, o tema e natureza do diálogo, no entanto, são muito próprios da sensibilidade helénica (já notórios na épica homérica, bem como em outros géneros poéticos e no trágico). Phthoneron theion: a divindade invejosa, que cerceia ao ser humano a delícia da vida, e a abate, por vezes cruelmente, pois só a ela, a divindade, está reservado ser makar, bem-aventurado.

E não só, são sentimentos transculturais, pois podem ser lidos em confronto com passos de livros bíblicos, como os de Job ou Eclesiastes.

domingo, novembro 08, 2009

CAIM E ABEL

E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR.
E Abel também trouxe dos primogénitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o SENHOR disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou.
(
Génesis 4:3-8).


Disse José Saramago que já desde há longa data achava a história bíblica da rejeição divina do sacrifício de Caim uma história mal contada. Finalmente, a concepção ganhou substância, deixou a mente e passou para o papel. E assim veio à luz o romance-tese Caim.

Suspeitei que algo houvesse nesse relato, sobretudo pelo não-dito, susceptível de fazer germinar a dúvida, o questionamento. Que fizesse suspeitar que esse Deus seria de facto arbitrário e governados pelos humores hepáticos, e que seria imparcial. Não que de facto eu cresse que esse fosse o carácter deste Deus – bem pelo contrário –, mas coloquei a questão prévia de saber se o texto permitiria essa leitura.

E reli o episódio.


*****


Lembrei-me dos meus tempos em que era professor em exercício. E o meu espírito viajou para uma sala de aula, onde uma turma de alunos trabalhava. Nessa turma, havia dois irmãos, Caíque e Alberto. Embora gémeos, eram diferentes como a noite e o dia. Nesse dia, o Dr. Elias de Deus, o professor, trazia os trabalhos classificados para entregar aos alunos. Chamou-os um por um, e entregou-os, com um pequeno comentário (remetendo embora para a apreciação escrita). O menino Alberto entregara um trabalho impecável: cuidado na apresentação, caligrafia bem desenhada, sem uma rasura; as margens respeitadas, sem que uma haste de letra ou um hífen a transpusesse; linhas de intervalo entre os títulos e corpo de texto; abertura de parágrafos avançada ao milímetro; fontes consultadas e referidas com os devidos créditos; texto redigido com esmero. Notava-se que o aluno levara a sério a tarefa, a disciplina, o trabalho e o próprio professor. Tendo em conta não apenas as capacidades e o grau de domínio das competências programáticas por parte do aluno demonstrado neste trabalho, e com especial menção o empenho e dedicação postos na sua elaboração, o trabalho colheu a aprovação do professor e mereceu-lhe um 18.

Já o irmão não era menos destituído de inteligência, talentos e capacidades de aprendizagem, ainda que em áreas distintas das do irmão. Caíque desejava seguir veterinária, ao passo que Alberto sonhava ser engenheiro agrónomo, ou enólogo. Tinha Caíque, porém, grandes diferenças em relação ao irmão. Não levava muita coisa a sério na vida. Sabia que para conseguir o queria da vida tinha de estudar, mas isso mais não era do que uma maçada e uma obrigação para ele, ter nota e o diploma ao fim eram tudo quanto lhe bastava. Tinha de estudar e tirar o curso, mas o caminho tinha de ser sem escolhos e com o mínimo de esforço. Cabular não era motivo de vergonha ética para ele, apenas um expediente técnico, um atalho, um meio perfeitamente justificado pelo fim. E apresentou um trabalho que era o espelho perfeito da sua postura e carácter: redigida à pressa, descuidado na apresentação, caligrafia com rasuras. Dir-se-ia que o tinha feito de véspera, a correr, pois tinha de estar pronto antes do jogo do Porto na televisão, imperdível. A despeito das capacidades do aluno, o Dr. Elias de Deus não podia deixar de ser justo e dar a nota adequada de acordo com o mérito: deu-lhe 8.

O negligente Caíque, cuja vida se regia pela máxima de que o caminho mais curto entre dois pontos é a recta, que em tudo se comparava com os outros, ressentiu-se da apreciação do professor. Queria o sucesso dos outros mas sem pagar o necessário preço. Considerava que o professor tinha sido injusto. Que professor difícil de agradar! Como nada podia fazer contra ele, teve inveja do irmão. E rosnou um outro queixume contra ele (“Que era sempre o Alberto, que se calhar ele nem era tão dotado quanto o Alberto, mas ao menos fizera o seu melhor – ou pelo menos o que pensava ser o seu melhor – e se isso não fora ). O Dr. Elias de Deus tratou logo de pôr água na fervura nas emoções que avassaladoramente perturbavam o rapaz, e de fazer um pôr em acção um pouco da necessária psicologia educacional:

– Caíque, para singrares na vida o caminho é esforçares-te. Terás novas oportunidades, no próximo semestre, com novo trabalho, e no exame. Faz assim e serás aprovado. Ficares furioso com o teu irmão não te fará aumentar a nota e nada te trará de bom. Essa oportunidade também a tens: dominar a tua ira. Também nisso está o crescer e ser aprovado.

O professor apresentou, como era regulamentar, relatório escrito circunstanciado de justificação dos casos de níveis inferiores a 10 (vulgo “negas”).

Os olhos e o coração de Caíque estavam vermelhos de raiva, e as palavras do professor, longe de os aplacarem, funcionaram mais como gasolina derramada no fogo. O seu senso de justiça própria não conhecia alternativa. No regresso a casa no fim de mais um dia de escola, pretexto de convidar o irmão a irem ter com umas miúdas com quem tinha marcado encontro, desvia-o para um lugar isolado. Joga-o ao chão, à traição.

Soube-se depois que o corpo de Alberto foi achado sem vida.

Dr. José Saratogo, o director executivo da escola, chamou o Dr. Elias de Deus ao seu gabinete. Fazia-lhe espécie a avaliação do docente aos dois alunos. Não compreendia nem aceitava o que entendia como descriminação do aluno Caíque em relação ao Alberto. Nem o fratricídio mudou alguma coisa ao juízo do Dr. Saratogo, homem que se prezava de pensamento heterodoxo e independente, e que se pautava por padrões muito próprios e pouco subsidiários do senso comum. A recepção ao docente foi pouco amigável, mas lacónica e esclarecedora:

– A senhora mãe do colega, a despeito do seu modo de vida que muito deve à virtude, ainda assim não desmerece do carácter ainda mais torpe do seu filho, o caro colega. O colega é o único culpado do acto desesperado do pobre Caíque. Como pode o senhor cometer tão grosseira descriminação? O colega, como professor, não é de fiar. O relatório que apresentou não passa de um manual de maus costumes pedagógicos. Aliás, professores como o senhor não existem. São produto inventado de mentalidades reaccionárias. E fique a saber que vou instituir o devido processo disciplinar ao colega!


*****


Regressei à Bíblia e às afirmações de José Saramago. Na li nem em abono da verdade tenho especial vontade de ler o romance Caim. Restrinjo-me pois ao que disse na ocasião e que o vincula, enquanto homem e pensador, a uma determinada tese a respeito da Bíblia, de Deus e do Deus da Bíblia.

A releitura do episódio bíblico de Caim e Abel não podia ter sido mais clara e cristalina. Lê-se que Caim ofereceu uma oferta e Abel outra. Da de Caim nada nos é dito sobre a sua qualidade: se foi excelente, boa, sofrível, medíocre, suficiente ou má. Simplesmente uma oferta. Da de Abel, todavia, lê-se que consistiu numa oferta das primícias e da gordura.

Entre os povos pagãos que praticavam a oferta de sacrifícios animais, a gordura tinha de pingar. Recentemente, no almoço convivial após culto de baptismos das igrejas filiadas na Aliança Evangélica do Luxemburgo, em Remerschen (no rio Mosela), assavam-se carnes várias na brasa. Um irmão brasileiro levara picanha. Servi-me de uma bela fatia e pus-me a separar cuidadosamente a gordura da carne – como é meu habito, pois sempre me repugnaram gordura e nervo. O irmão brasileiro sentenciou:

– A gordura é o melhor da picanha.

A qualidade da oferta de Abel era pois a melhor: não só deu a Deus o melhor da carne (a gordura), como deu das primeiras crias nascidas. Pôs o seu cuidado em honrar a Deus com o melhor que tinha e antes de pensar no sustento próprio. Assim se compreende que a sua oferta tenha honrado e agradado a Deus.

Em contraste, a omissão quanto à qualidade da oferta de Caim permite intuir que o zelo esteve ausente, que se tratou de uma simples oferta. Feita segundo a mentalidade medíocre segunda a qual “o que conta é a intenção”. Como se não houvesse solidariedade entre a intenção e a oferta consumada. Com efeito, para Deus, o Senhor, tudo quanto não é o melhor não passa de resto. Não há o segundo nem o terceiro melhor, apenas o melhor e o resto. Não partilho, de modo algum, numa exegese corrente, segundo a qual a oferta exigida por Deus era de sangue. Com efeito, na Lei levítica, admitiam-se ofertas de outro tipo que não apenas o de animais. Estas fariam sentido se se tratasse de ofertas de expiação pelo pecado. No caso de Caim e Abel, nada nos é dito sobre o tipo de ofertas em questão. Parece pois que o que esteve em causa foi a intenção, a atitude dos ofertantes, e como esta se traduziu em termos práticos, tão-só isso. A oferta de Abel representa a consagração a Deus do melhor dos seus fiéis, a expressão visível do amor e temor que Ele lhes inspira.

Esta é a evidente leitura que pode e deve ser feita do episódio bíblico. O texto não suscita equívocos. Qualquer outra leitura não tem respaldo no texto, mas tão-somente em pressupostos oblíquos. E foi em pressupostos que se baseou Saramago. Os seus pressupostos e preconceitos, de uma leitura oblíqua. Tinha uma ideia do que o texto dizia, um preconceito contra o Deus da Bíblia, mas não o conferiu, o fê-lo, mas sem o entender, logo obliquamente. E viu no texto o que nele não está, não vendo o que nele está. Trata-se de pura e simplesmente ler e interpretar o texto, mesmo como literatura, algo que se ensina aos alunos desde o 1.º ciclo do ensino básico. Tal leitura feita mereceria uma rotunda negativa se fosse feita por um aluno num contexto de exame. Feita por um prémio Nobel é grave, mas tem honras de destaque nos jornais, na televisão e nos blogs. Tem todo o direito de não crer em Deus, mas não de ler mal.

Esta é a razão por que o considero intelectualmente fanático e desonesto.

sábado, novembro 07, 2009

No Éden


"Para aqueles que frequentam o jardim
o mundo está sempre a florescer
Longe de mim diminuir o louvor"

José Tolentino Mendonça, in "Sintra, antiga Estalagem da Raposa"


Aqueles que frequentam o jardim
fazem de cada pétala a sua casa
em cada cor reflectem as luzes da cidade
em cada olor se lavam da poeira das estradas.

A sombra das árvores é o seu deleite.
Se se sentam nos bancos, é para que
os ouvidos fiquem atentos
ao salmo dos pássaros
e do rumor das folhas.

No jardim o tempo não tem fronteiras,
não há sebes,
nele deixa o infinito o seu lastro.

Longe de mim romper
a fina membrana do silêncio
longe de mim permitir que
a perene florescência
do mundo, que para eles é o jardim,
deixe de entoar o devido salmo do louvor.

1/11/09

Publicado como inédito em Poeta Salutor

crepúsculo sobre Atacama


rasgo com mãos de sonho

convertido em visão

visão quente

do rés da planura

a espraiar-se para o azul


deixar de sonhar

os olhos de ver

jóias no céu

cumprem-se o bastante no contemplar


2/10/09


quinta-feira, novembro 05, 2009

La nuite tombe sur Atacama


L’eau n’érode pas ces pierres
ni le vent ici a donné rendez-vous

à moins éventuellement que sur la toile du ciel
où il a tracé les premiers brouillons
de nuages
que tout au long de la nuit parcourront
le regard
sur l’ignoré sphère du ciel
d’où l’eau peut-être
ne tombera pas
ni le vent ne quittera son
absence

deux seuls sentinelles
légèrement courbées
en révérence au crépuscule
racontent l’histoire sans trame
du désert

Cai a noite em Atacama


A água não erode estes pedregais
nem o vento aqui marcou presença

a não ser talvez na tela do céu
onde riscou os primeiros esboços
de nuvens
que ao longo da noite percorrerão
o olhar
na incógnita esfera do céu
donde a água quiçá
não caia
nem o vento deixe a sua
ausência

duas sós sentinelas
ligeiramente curvadas
em reverência ao crepúsculo
relatam a história sem enredo
do deserto

23/10/09

segunda-feira, novembro 02, 2009

CONTRA O ABSENTISMO ESCOLAR… A POLÍCIA

Na Bélgica, a escolaridade é obrigatória até aos 18 anos, como se pretende que seja, aliás, em Portugal. Mas a diferença está em que, na Bélgica, a escolaridade É MESMO OBRIGATÓRIA. Contra o absentismo escolar, há já anos que enviam agentes de polícias por centros comerciais e outros lugares à caça de imberbes e absentistas. Quando apanham um outro dois, identificam-nos e escoltam-nos à escolinha, deixando-os no gabinete do respectivo director.
Qualquer que seja a desculpa dos acnosos adolescentes para andarem por aí em vez de na sala de aula: seja porque tenham perdido o autocarro ou porque estejam doentes.
Em caso de reincidência, são os pais dos prevaricadores quem paga uma pesada multa.
Uuhhmmm… Uma sugestão para a nova equipa do Ministério da Educação de Portugal.

NOS CANAIS DE VENEZA


Queria em todas as horas
prender num só abraço
os canais e as pontes
e cingir num laço as ilhas
encerrar num só olhar
os palácios e as igrejas
reter na concha da mão
as gôndolas
desfiar o labirinto de cada calle e fondamenta,
como só o faço aos cabelos do meu amor.

Esperava encontrar nos campi
de Veneza
os portos da minha armada
em cada sottoportego as pistas de tesouros
de piratas
soterrados detrás de cada porta
na praça de S. Marcos restauraria
a serenidade
dos veneráveis Doges de antanho
reconverteria
um sonho de grandeza
na grandeza de um sonho.

Conter-te em mim
era como a descoberta da dracma perdida
eras a cidade há muito demandada pelos meus exércitos imperiais.

Mas ao ter as tuas pedras a meus pés
percebi
que não te podia conquistar
que a grande Torre do Relógio
não é o fundo do recife
onde pudesse
a minha âncora pousar.

És tu, a Sereníssima,
quem me conduz
em cortejo pelo Grande Canal
e quem, à flor das negras quilhas das gôndolas,
cobrindo o meu rosto
com uma das tuas muitas máscaras,
me faz jogar à apanhada e às escondidas
atrás da penumbra perdida
das tuas vielas e pontes

furtivamente propícias ao amor e à conspiração.

31/10/09

domingo, novembro 01, 2009

pés de sol


Descalça
e de alma nua,
a criança
penetra o limiar hermético
do nosso olhar

mergulha os pés sem mácula
para a inauguração da areia
por baixo há brasas quentes
passo a passo pé ante pé
titubeia
sobre o manto do sol

como sobre a erva hesitante
um tenro gamo
conquista o espaço prudente
deixa marcos
na superfície de poalha amarela

afinal a praia é agora dela
e são os seus pés agora firmes
quem pela areia difunde a claridade
e no nosso olhar
deixa um raio de sol
indelével

27/10/09