Exmo. Senhor Primeiro-Ministro
Assunto: ortografia portuguesa
Pretende-se de um líder, de qualquer governante que aponte alvos e rasgue caminhos. Que catalise vontades e as une. Que seja exemplo, coerente e virtuoso, para os demais cidadãos; em especial, que não mude fácil e rapidamente de parecer quando, da oposição, transita por via de eleições para o exercício do poder, passando a executar um programa diferente do proposto anteriormente, eventualmente não o seu, mas o de uma qualquer troika ou do seu partido (e isto por medo ou pusilanimidade moral). Um líder tem visão, e tem a sua actividade, bem como a vida, como missão. Quando assim não for, os liderados não precisam de um líder, mas de um mero amanuense, um funcionário administrativo subalterno que execute e faça executar as políticas definidas de cima.
Era V. Exa. em 2008 ainda líder do maior partido da oposição, e respondia V. Exa., por e-mail, a uma questão do cidadão Ruben D., acerca do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90):
“Já tenho afirmado, em resposta a essa questão colocada por jornalistas, que o acordo que Portugal assinou há vários anos atrás (porque tal acordo já foi assinado) não representa nenhum benefício para a língua e cultura portuguesa, pelo que não traria qualquer prejuízo que não entrasse em vigor. De resto, não vejo qualquer problema em que o português escrito possa ter grafias um pouco diferentes conforme seja de origem portuguesa ou brasileira. Antes pelo contrário, ajuda a mostrar a diversidade das expressões e acentua os factores de diferenciação que nos distinguem realmente e que reforçam a nossa identidade. Aliás, considero míope a visão de que o mercado brasileiro de cultura passará a estar aberto aos autores portugueses em razão da homogeneidade da grafia, pois que o interesse desse mercado pela nossa produção só pode depender do real interesse pelas nossas especificidades e aí a suposta barreira do grafismo não chega a ser uma barreira, pode ser um factor de distinção que acentua o interesse pela diferença.”
Esta sua comunicação foi tornada pública, pelo que, dada esta circunstância, tomo a liberdade de a citar. As razões então invocadas por si são pertinentes e merecem o meu acordo, bem como (como parece ser o caso) da maioria dos seus concidadãos.
Chegado à liderança do governo, V. Exa. cabe a verificação de que V. Exa. parece ter mudado de parecer, sem contudo de tal ter informado a quem em si votou na expectativa de que acabaria com esta demência (como igualmente noutras expectativas).
Por várias vezes, V. Exa. pediu aos seus concidadãos que lhe dessem, a si e ao seus governo, sugestões que os ajudassem a governar melhor. Não duvidando da sinceridade desse seu pedido, venho por este meio responder: a tomada de uma posição própria de um líder, a favor dos liderados e dos superiores interesses nacionais, regressando em coerência ao que antes dissera e à visão que tinha, e faça o Estado Português recuar, revogando o AO90, desprezando assim uma indigna herança dos anteriores governos, e ficando registado na História de Portugal como o Primeiro-Ministro patriota que preveniu um tal mal. Que o será, disso não tenha V. Exa. dúvidas; com efeito, o que presentemente está a suceder, na babilónia ortográfica gerada em Portugal, fora previsto em pareceres científicos de há vários anos.
Ora, a implementação do AO90 é ilegal, a vários títulos:
1. A aplicação do A090 a Portugal resulta da resolução da Assembleia da República da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, 1.ª série, n.º 145, de 29 de Julho de 2008, pp. 4802-4803, publicada no Diário da República. Esta resolução apresenta vários problemas, de direito e práticos:
1.1. Uma resolução parlamentar situa-se, em termos de hierarquia legislativa, abaixo de Decretos-Leis, bem como de Tratados Internacionais de que Portugal seja signatários, não tendo poder para violá-los, nem a eles se sobrepor. Particularmente, refiro-me ao Decreto 35 228 de 8 de Dezembro de 1945, que determinou a aplicação do Acordo Orográfico de 1945 (AO45), modificado em 1973. Por conseguinte, o que de iure se encontra vigente é este último, tornando a aplicação de facto do AO90 uma ilegalidade, além de imposição política.
1.2. O artigo 2.º desta resolução estipula que, até pelo menos 2015 decorre um período de transição de seis anos até à vigência definitiva do AO90. Ao longo deste período, as duas ortografia são legítimas. A vigência desta resolução decorre desde 13 de Maio de 2009, sendo que o Governo então em exercício somente a deu a conhecer aos cidadãos a 17 de Setembro de 2010, mediante o aviso n.º 255/2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Diário da República, sendo que o deveria obrigatoriamente ter feito, como estipula a Constituição da República Portuguesa, nos termos do art.º 9.º, 1. b), em Diário da República, sob pena de “ineficácia jurídica” (art.º 119.º, 2.). Ora, não é razoável o prazo de vácuo de 1 ano, 4 meses e 4 dias entre as duas datas, nem que a data de vigência seja outra que não a da publicação em Diário da República.
2. O AO90 foi assinado por sete países lusófonos (Timor Lorosae, país então inexistente, viu aberta a possibilidade de adesão num Segundo Protocolo Modificativo, datado de 25 de Julho de 2004, como oitavo signatário), e até hoje, dois dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) não o ratificaram. Ora, o artigo 24 da Convenção de Viena, de 1969, que regula o Direito dos Tratados Internacionais, a que Portugal aderiu, no qual está estipulado que os tratados internacionais só poderão entrar em vigor nos países signatários após ratificação de todos os signatários dos mesmos. Por consequência, é ilegal a aplicação do AO90 em Portugal (ou em qualquer outro país, de resto).
3. O AO90 prevê, no artigo 2.º, que “os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.” Não se discutirá aqui a data apontada, mas o facto de a existência da um Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) ser conditio sine qua non da implementação do AO90 nos Estados signatários.
3.1. Existe apenas, até à data, um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), no Brasil, sob a responsabilidade de Evanildo Bechara, e, em Portugal, um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora, sob orientação de João Malaca Casteleiro, e um Vocabulário Ortográfico do Português do Instituto de Linguística Teórica e Computacional.
3.2. Estes vocabulários apresentam discrepâncias na grafia dos mesmos vocábulos, em questões em que o AO90 era incongruente, resolvidas localmente. Por exemplo, o AO90 preconiza (cf. Base XVI “Do hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação” grafias como primo-infeção e co-herdeiro, alteradas no VOLP para primoinfeção e coerdeiro.
3.3. O AO90 já admitia facultatividades (cf. recepção/receção; decepção/decepção; amámos / amamos; averigúe/averígue; dêem/dêem, etc.), o que demonstra que a putativa unificação e diluição das diferenças não apenas não se cumpre, como ainda se promovem. Os exemplos citados configuram uma atitude mais grave de violação de regras claramente consignadas no texto legal.
3.4. Tudo isto, em suma, demonstra a ilegalidade da aplicação do AO90.
4. Outro documento a que a Universidade da Madeira deveria atentar é a declaração final da reunião de Ministros da Educação da CPLP, em Março último em Luanda, na qual todos os ministros (com a autoridade de representação dos respectivos Estados) concordaram que “a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 no processo de ensino e aprendizagem revelou a existência de constrangimentos” e decidiram proceder a “um diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação do Acordo Ortográfico de 1990”, sendo que será necessário a implementação de “acções conducentes à apresentação de uma proposta de ajustamento do Acordo Ortográfico de 1990, na sequência da apresentação do referido diagnóstico”.
4.1. Esta declaração vincula não apenas os ministros signatários, como também os Estados que eles representam.
4.2. Isto quer dizer que, no mínimo, cada Estado se comprometeu a proceder, internamente, a tal avaliação, sendo que o resultado da mesma determinará a aplicação do AO90.
4.3. Não muito tempo depois, o Sr. Secretário de Estado da Cultura de Portugal rejeitou que o AO90 fosse objecto de revisão.
4.4. Ora, trata-se de uma reacção extemporânea, fora do tempo, pois conclui uma coisa antes mesmo do necessário (e, friso, imperativo, face à declaração de Luanda) diagnóstico. Só o tal diagnóstico poderá ou não decidir da necessidade ou da conveniência de tal revisão, ou até da revogação pura e simples do AO90; dizer, antes de começar o diagnóstico a que o colega Ministro se comprometeu, dizer que não haverá, é condicionar o mesmo, é apontar-lhe um caminho de mero pró-forma para justificar o que está previamente ex cathedra decidido, é governar por decreto e dogma.
Não elencarei mais argumentos de ordem científica e jurídica, nem o grande número de pareceres científicos, a larga maioria, que previamente alertaram para o que a declaração de Luanda chama “constrangimentos e estrangulamentos”, assinalando a concretização do que fora, muito antes e repetidamente, por assim dizer, profetizado. Poderia citar nomes de académicos, escritores, jornalistas, e até membros do seu partido político, que estudaram o assunto e publicamente o expuseram em publicações, conferências e pronunciamentos na comunicação social. Fazê-lo seria alongar esta minha carta, além de me arriscar a pecar por defeito, deixando omissos nomes de outros que, oriundos das mais diversas áreas, se têm manifestado, fundamentadamente, contrários ao AO90. Nem darei exemplos de tais “constrangimentos” (basta referir a prodigalização de fenómenos de ultracorrecção que resultam em abrasileirizações da grafia, em publicações de responsabilidade, e que deveriam ser a referência do rigor e do respeito pela norma, como o Diário da República, onde ocorre a grafia “fato”, em vez de “facto”, em que o “c” é pronunciado em Portugal).
Porém, a oposição em Portugal ao AO90 é também de cidadania. Como cidadã, uma mãe, encarregada de educação e médica escreveu uma carta ao Sr. Ministro da Educação reclamando da imposição do AO90 na escola da sua filha. E mais recentemente, António de Macedo, cineasta, endereçou a V. Exa. carta electrónica de contestação. Apoio totalmente a iniciativa desses dois cidadãos, e envio-lhe a minha própria.
Certo da melhor atenção de V. Exa., subscrevo-me com os melhores cumprimentos
Rui Miguel Duarte
(Doutor em Literatura pela Universidade de Aveiro; Investigador integrado no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)
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