Exmo. Senhor
Prof. Doutor José Manuel Nunes Castanheira da Costa
Magnífico Reitor da Universidade da Madeira,
Assunto: critérios da Prova de
Português/Língua 2012
A Universidade da Madeira
publica, no seu sítio e electrónico, o programa e critérios da Prova de
Português/Língua 2012. Entre estes, lê-se: “A
avaliação compreende uma prova escrita, com a duração de 120 minutos,
utilizando a nova ortografia da língua portuguesa.”
Ora, esta disposição é ilegal, a vários títulos:
1.
A aplicação do A090 a Portugal resulta da resolução
da Assembleia da República da
Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, 1.ª série, n.º 145, de 29 de
Julho de 2008, pp. 4802-4803, publicada no Diário da República. Esta resolução
apresenta vários problemas, de direito e práticos:
1.1.
Uma resolução parlamentar situa-se, em termos de
hierarquia legislativa, abaixo de Decretos-Leis, bem como de Tratados
Internacionais de que Portugal seja signatários, não tendo poder para
violá-los, nem a eles se sobrepor. Particularmente, refiro-me ao Decreto 35 228
de 8 de Dezembro de 1945, que determinou a aplicação do Acordo Orográfico de
1945 (AO45), modificado em 1973. Por conseguinte, o que de iure se encontra
vigente é este último, tornando a aplicação de facto do AO90 uma
ilegalidade, além de imposição política.
1.2.
O artigo 2.º desta resolução estipula que, até pelo menos 2015
decorre um período de transição de seis anos até à vigência definitiva do AO90.
Ao longo deste período, as duas ortografia são legítimas. A vigência desta
resolução decorre desde 13 de Maio de 2009, sendo que o Governo então em
exercício somente a deu a conhecer aos cidadãos a 17 de Setembro de 2010,
mediante o aviso n.º 255/2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Diário da República, sendo que o deveria
obrigatoriamente ter feito, como estipula a Constituição da República
Portuguesa, nos termos do art.º 9.º, 1. b), em Diário da República, sob pena de “ineficácia jurídica” (art.º
119.º, 2.). Ora, não é razoável o
prazo de vácuo de 1 ano, 4 meses e 4 dias entre as duas datas, nem que a data
de vigência seja outra que não a da publicação em Diário da República.
2.
O AO90 foi assinado por sete países lusófonos (Timor
Lorosae, país então inexistente, viu aberta a possibilidade de adesão num
Segundo Protocolo Modificativo, datado de 25 de Julho de 2004, como oitavo
signatário), e até hoje, dois dos países da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP) não o ratificaram. Ora, o artigo 24 da
Convenção de Viena, de 1969, que regula o Direito dos Tratados Internacionais, a que Portugal aderiu, no qual está estipulado que os tratados internacionais só
poderão entrar em vigor nos países signatários após ratificação de todos os
signatários dos mesmos. Por consequência, é ilegal a aplicação do AO90 em
Portugal (ou em qualquer outro pais, de resto).
3.
O AO90 prevê, no artigo 2.º, que “os Estados
signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as
providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de
um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo
quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às
terminologias científicas e técnicas.” Não se discutirá aqui a data apontada,
mas o facto de a existência da um Vocabulário
Ortográfico Comum (VOC) ser conditio
sine qua non da implementação do AO90 nos Estados signatários.
3.1.
Existe apenas, até à data, um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa
(VOLP), no Brasil, sob a responsabilidade de Evanildo Bechara, e, em
Portugal, um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto
Editora, sob orientação de João Malaca Casteleiro, e um Vocabulário Ortográfico do Português do Instituto de Linguística
Teórica e Computacional.
3.2.
Estes vocabulários apresentam discrepâncias na
grafia dos mesmos vocábulos, em questões em que o AO90 era incongruente,
resolvidas localmente. Por exemplo, o AO90 preconiza (cf. Base XVI “Do
hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação” grafias como primo-infeção e
co-herdeiro, alteradas no VOLP para primoinfeção e coerdeiro.
3.3.
O AO90 já admitia facultatividades (cf. recepção/receção; decepção/decepção; amámos / amamos;
averigúe/averígue; dêem/dêem, etc.), o que demonstra que a putativa
unificação e diluição das diferenças não apenas não se cumpre, como ainda se
promovem. Os exemplos citados configuram uma atitude mais grave de violação de
regras claramente consignadas no texto legal.
3.4.
Tudo isto, em suma, demonstra a ilegalidade da aplicação do
AO90.
4.
Outro documento a que a Universidade da Madeira
deveria atentar é a declaração final da reunião de Ministros da Educação da
CPLP, em Março último em Luanda, na qual todos os ministros (com a autoridade
de representação dos respectivos Estados) concordaram que “a
aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 no processo de ensino e aprendizagem
revelou a existência de constrangimentos” e decidiram proceder a “um
diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação do
Acordo Ortográfico de 1990”, sendo que será necessário a implementação de
“acções conducentes à apresentação de
uma proposta de ajustamento do Acordo Ortográfico de 1990, na sequência da
apresentação do referido diagnóstico”.
4.1.
Esta declaração vincula não apenas os ministros
signatários, como também os Estados que eles representam.
4.2.
Isto quer dizer que, no mínimo, cada Estado se
comprometeu a proceder, internamente, a tal avaliação, sendo que o resultado da
mesma determinará a aplicação do AO90.
4.3.
Não muito tempo depois, o Sr. Secretário de Estado
da Cultura de Portugal rejeitou que o AO90 fosse objecto de revisão.
4.4.
Ora, trata-se de uma reacção extemporânea, fora do
tempo, pois conclui uma coisa antes mesmo do necessário (e, friso, imperativo,
face à declaração de Luanda) diagnóstico. Só o tal diagnóstico poderá ou não
decidir da necessidade ou da conveniência de tal revisão, ou até da revogação
pura e simples do AO90; dizer, antes de começar o diagnóstico a que o
colega Ministro se comprometeu, dizer que não haverá, é condicionar o mesmo, é apontar-lhe
um caminho de mero pró-forma para justificar o que está previamente ex
cathedra decidido, é governar por decreto e dogma.
Não elencarei mais argumentos de ordem científica e
jurídica, nem o grande número de pareceres científicos, a larga maioria, que
previamente alertaram para o que a declaração de Luanda chama “constrangimentos
e estrangulamentos”, assinalando a concretização do que fora, muito
antes e repetidamente, por assim dizer, profetizado. Poderia citar nomes de
académicos, que estudaram o assunto e publicamente o expuseram em publicações,
conferências e pronunciamentos na comunicação social (António Emiliano, Fernando
Venância, Francisco Miguel Valada, Maria do Carmo Vieira, Maria Alzira Seixo,
Vasco Graça Moura). Fazê-lo seria alongar esta minha carta, além de me arriscar
a pecar por defeito, deixando omissos nomes de outros que, oriundos das mais
diversas áreas, se têm manifestado, com fundamentos, contrários ao AO90.
Nem darei exemplos de tais “constrangimentos”
(basta referir a prodigalização de fenómenos de ultracorrecção que resultam em
abrasileirizações da grafia, em publicações de responsabilidade, e que deveriam
ser a referência do rigor e do respeito pela norma, como o Diário da
República, onde ocorre a grafia “fato”, em vez de “facto”, em que o “c” é
pronunciado em Portugal).
Permito-me, face a todo o exposto, fazer uma
sugestão, e um encorajamento: que a Universidade da Madeira, sob o patrocínio
de V. Exa., instituição que, na qualidade de universidade, tem
responsabilidades na educação, contribua para o tal diagnóstico previsto pela
declaração de Luanda, de forma a debelar os “constrangimentos” que o Ministro
da Educação do Governo da República de Portugal concorda existirem. E de
outrossim repor a legalidade. O primeiro sinal nesse sentido, seria, compreensivelmente,
a revogação da exigência em epígrafe no programa da Prova de Português/Língua 2012.
Certo da melhor atenção de V.
Exa., subscrevo-me com estima e consideração pessoal e institucional
Rui Miguel Duarte
(Doutor em Literatura pela
Universidade de Aveiro; Investigador integrado no Centro de Estudos Clássicos
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)
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