«Vivemos numa época de trânsito, como sempre»
O mundo mudou. Este é um dado de facto, mas não é um dado novo, porque muda sempre. É próprio do tempo fluir e mudar, assim como o é de todos os corpos sujeitos às suas leis. Neste mundo que, hoje, está tão mudado, o cristianismo também é forçado a redesenhar o seu lugar, precisamente porque aquele que ocupara nos últimos séculos deixou de lhe ser reconhecido. Do centro passou para as margens. Mas o facto do cristianismo dever confrontar-se com o tempo em mudança e que o desinstala, também não é novo. Dois mil anos de história é um tempo muito longo e rico de muitas mudanças e de aquisição de novas qualidades. O que somos hoje é o resultado de uma já longa história, bela e dramática, mas, ainda, inacabada de encarnação do Evangelho de Jesus na vida de pessoas e de grupos. Quanta diferença há entre os três primeiros séculos e a Igreja de Trento; quanta diferença entre a Igreja do início do segundo milénio e a que saiu do Vaticano II. E, porém, continua a ser a mesma Igreja de Jesus Cristo, realizada no fluir do tempo e na mudança dos lugares, em tantas formas de vida e de culto, de pensamento e de arte. Também por isto, os discursos de regresso e de recuperação do passado, como se de um paraíso perfeito se tratasse, sem tempo nem crises, não é sem ambiguidade. A primeira pergunta que ocorreria colocar seria esta: a que momento do passado e a que forma eclesial deveríamos regressar, já que o nosso longo património testemunha tantas?; porquê regressar à Igreja pré-Vaticano II e não à Igreja pré-Trento, por exemplo?
A memória (arriscada, disse o teólogo J. B. Metz) da qual o cristianismo vive é a boa notícia da salvação que os evangelhos atestam poder realizar-se no presente de cada homem e mulher, de todos os tempos e lugares, tal como se realizou na experiência de fé dos primeiros discípulos. A memória cristã vive da promessa de que o dom de vida que Deus nos oferece em Jesus é capaz de se realizar na biografia de cada pessoa e na configuração de cada grupo. Por isso, tal como no passado (em cada momento do nosso passado comum), a promessa do início assumirá uma forma concreta no momento histórico que é o nosso.
Assim, neste tempo de fratura e de incerteza, mais do que preocupados com o reconhecimento público e o número de fiéis que enchem ou esvaziam as igrejas, conviria começar por perguntar onde poderemos reencontrar um Deus que parece ter passado para o baú das memórias vagas e, finalmente, irrelevantes. Onde é que hoje habita o Deus cristão? Quais poderão ser os sinais da sua passagem, nos dias de hoje, talvez, mais discreta? Sabíamos que vivia no centro, que dirigia as consciências e os grupos, que garantia claramente uma estrutura de representantes e de ritos, que premiava bons e castigava maus. Mas, hoje, quando os centros, as consciências, as estruturas, os céus e os infernos se fragmentam e dissipam, onde habitará? Que lugar Lhe restará? Que direção deveríamos tomar para ir no seu encalço? Talvez O possamos pressentir mais humilde, mais como espaço de respiro e de encontro possível entre diferentes. Poderá ser até que não nos possa ajudar muito. Nesse caso, poderíamos ajudá-Lo nós, como diria Etty Hillesum em plena perseguição nazi, e compreender, assim, melhor, como o divino não está em deixar-se conter pelo maior mas em deixar-se identificar pelo mais pequeno. E poderíamos reconhecer que, de facto, não era digno, nem de nós nem de Deus, instrumentalizá-Lo como simples tapa buracos das nossas insuficiências e desilusões (D. Bonhoeffer).
Tal como Elias (l Re 19,9ss), à entrada da caverna da nossa fuga regressiva, poderemos ter que reconhecer a presença de Deus onde pareceria não poder estar. Talvez já não nos lugares centrais e esperados: nem no vento impetuoso, nem no terramoto demolidor, nem no fogo abrasador, mas na brisa ligeira de um outro lugar improvável, mas igualmente capaz de reconciliar com a missão de anunciar o Senhor. (...)
O momento presente é tempo favorável
Este é o tempo favorável para o cristianismo. Não se trata de uma afirmação psicologicamente otimista, mas da convicção teológica de que não há um momento ideal para o anúncio do Evangelho, precisamente, porque o Evangelho é dom de vida para cada tempo. Por isso, cada momento é momento propício para a realização da palavra e do gesto de Deus realizado em Jesus.
Hoje, como no passado, temos dois grandes dons que precisamos de conservar em conjunto: um, o dom de Deus, atestado nos evangelhos como dádiva para cada homem e para cada mulher de todos os tempos e lugares; o outro, o momento presente, com os seus contornos específicos, como o corpo real para a realização do dom de Deus. Se perdêssemos o primeiro, perderíamos o fermento que leveda a massa. Se perdêssemos o segundo, não teríamos massa para que, com o fermento, se possa fazer pão. O Evangelho é dom de vida para cada tempo; cada tempo específico tem a virtude de poder acolher e dar corpo - um corpo concreto - ao Evangelho. Assim, e como dizia acima, para atravessar o momento presente de fratura, parece pouco querer recuperar, simplesmente, um qualquer fragmento do passado e do seu património, considerado mais perfeito e, pretensamente, mais fiel, de modo a contrariar a degradação atual dos valores e das estruturas, como se toda a verdade e justiça na nossa fé estivessem às nossas costas e nada de nosso nos fosse dado oferecer. A cidade nova que há de vir e em cuja construção participaríamos (cf. Ap 21, 9ss) perde para o paraíso perfeito dos inícios que só nos caberia receber passivamente (cf. Gn 2,4ss). Mas também parece pouco absorver acriticamente a linguagem e o gosto do tempo, acabando por oferecer uma fé fácil e segura como resposta e solução para todos os problemas, como caminho garantido de felicidade e terapia de todos os desconfortos. Para atrair mais uns quantos, seria muito pouco promover uma fé simpática, à medida das expectativas: não custaria quase nada e garantiria quase tudo. Mas, claro, nem a fé nem a vida admitem este nivelamento. São imensamente mais complexas e dramáticas. A experiência da fé, como o ato de viver, é visceral. Se não for testemunhada como questão de vida e de morte - questão verdadeiramente vital -, não chegará a persuadir como dom, em cujo reconhecimento e adesão se decide uma existência: o corpo e o espírito, os afetos e a inteligência, a vontade e a liberdade, a identidade e as relações.
A fé atravessa os cumes e os abismos da existência humana
Recuperar o contacto com a densidade elementar e biográfica da existência humana, com todas as suas limitações, ambiguidades e tensões, deveria ser uma das preocupações centrais do testemunho cristão: das formas de vida e de celebração, de organização, de criação artística e de pensamento. Para tal, precisaríamos de abandonar chavões grandiloquentes, moralismos fáceis, paternalismos irrelevantes, falsos consensos, boas intenções que, no fundo, nem acolhem a força transformadora do Evangelho, nem recolhem a riqueza da Tradição eclesial, nem enfrentam o concreto da realidade, com as suas ambiguidades e promessas.
Ocorrerá recuperar a densidade dos grandes lugares e movimentos da vida humana (curiosamente, as artes e, entre elas, a literatura ou o cinema, parecem perceber isso melhor que muita catequese): nascimento e morte, sexo e trabalho, celebração e dor, educação e economia, as coisas primeiras e últimas da existência. Estes são os ritmos e os lugares onde a vida de cada um se decide e a carne, na qual o mistério de Deus incide, na qual se diz e age, se é que a verdade cristã se apresenta como manifestação real e não apenas como afirmação formal de uma verdade intemporal. Mas nós, nas nossas catequeses e iniciativas, no nosso estilo de vida comunitário, na nossa prática litúrgica, parece que perdemos o contacto com eles e a sabedoria para os viver como lugares de bênção e de graça. Porém, sem eles, o cristianismo tornar-se-á abstrato, banal, patético até. Portanto, sem densidade. Finalmente, irrelevante. Precisará, por isso, de reaprender a realizar-se entre Deus e os ritmos e lugares do viver quotidiano, entre a transcendência e o mundo, o absoluto e o particular, a origem e o destino.
O cristianismo estará à altura do seu tempo se for capaz de viver, de celebrar, de pensar e, assim, de realizar o Evangelho como palavra e gesto que saiba a vida e que faça viver. Não a vida ideal, mas a vida pequena, ferial, quotidiana. Para isso, precisa de usar formas de vida, de linguagem e de pensamento nas quais homens e mulheres, social e culturalmente situados, se revejam. No entanto, não poderá deixar de realizar a contestação profética de fixações, idolatrias, abstrações e não deixará de forçar os limites, de alargar o horizonte, de escavar novas profundidades. Mas fá-lo-á como bênção capaz de recolher, descrever e promover o que de melhor cada biografia e cada grupo tem para dar em contacto com a graça que salva.
O cristianismo será presença qualificadora se for presença qualificada
Quando o espaço do viver comum já não aceita ser plasmado pelo laço íntimo entre o cristianismo e o corpo social, resta à fé aquilo que, na realidade, lhe é essencial e que, talvez, pela segurança de um reconhecimento social garantido, tinha descurado: o testemunho. Este é a sua fragilidade e a sua força.
O cristianismo só poderá qualificar o viver individual e comum se se oferecer no testemunho de biografias e de grupos qualificados pelo Evangelho. Se Jesus é a entrega de Deus ao crédito que o ser humano lhe queira reconhecer (este é o modo que Deus escolheu para Se revelar), a Igreja não tem outro modo de manifestar o seu Senhor que não seja o de se expor ao crédito alheio, oferecendo-se à liberdade de cada um de O reconhecer como digno de confiança. Assim, reaprenderemos que a verdade de que vivemos não é de ordem lógico-gramatical ou de estatuto social, mas de ordem vital: é o reconhecimento e a adesão coerente Àquele - Jesus de Nazaré - que se apresenta historicamente na fragilidade de um corpo humano, exposto, por isso, à contingência de lugares, de tempos, de relações concretas.
É pedido ao cristianismo que esteja à altura do Evangelho que anuncia, não como ideologia, mas como graça que salva enquanto incide e transforma biografias e grupos, concretamente situados, assumindo, também ele, uma configuração histórica determinada (um corpo). Ao mesmo tempo, não poderá aceitar ficar abaixo das realizações do momento presente, nos mais variados campos: das artes às ciências, da filosofia à economia, do pensamento ético às políticas sociais.
A pobreza determina a qualidade da presença do cristianismo
A perceção da nudez e da confusão poderá dar lugar à consciência do dom. Quando parecia que estávamos a perder algo de essencial, afinal, estávamos a ser agraciados com a dádiva maior da pobreza, lugar propício para riquezas maiores. É verdade que no mundo ocidental nos estamos a tornar uma minoria sem esplendor particular, expostos a um tempo que muda vertiginosamente e que não nos pede opinião e, ainda menos, autorização. Por vezes, parece que deveríamos pedir desculpa por ainda existirmos, já que, do nosso passado, só chegariam, até hoje, malfeitorias. Mas, ad intra, também nos faltam formas de oração, de linguagem, de celebração e de representação da presença de Deus. Estamos, por isso, entregues a nós próprios. E isto parece muito pouco.
Ficamos expostos à nossa nudez que também passa, hoje, por acolher muitas diferenças, às vezes as mais bizarras, e a estranheza de tantas coisas e pessoas. Dar lugar ao outro -uma pessoa ou um momento histórico - é sempre dar lugar à morte. Na realidade, o que me chega com o outro é a minha morte, porque ele é radicalmente o não-eu. A experiência do outro, como a experiência de Deus, em muitas passagens da Escritura, é terrível, precisamente, porque não suporta ser tratada com o sentimentalismo ou a ideologia daquele diálogo que, na verdade, o nega, procurando seduzi-lo, neutralizá-lo, capturá-lo ou evitá-lo (M. de Certeau). Porém, no cristianismo, o encontro com o outro parte da confiança de que se receberá dele, não só a morte, mas a vida. Dar-lhe lugar é também receber a graça de participar numa vida que se supera a si própria para ir mais longe. Uma vida que não é feita para ser capitalizada para a eternidade, mas para ser dada e perdida no mesmo momento em que é servida (S. Morra). Não existe experiência cristã que não atravesse o combate de uma hospitalidade ferida e jubilante, de uma vida ligada a um desaparecimento. Estaremos à altura desta perda? Queremos atravessá-la e receber dela outras formas de visibilidade? Este é o risco real da dura prova da morte. O que seremos? A Deus nos confiamos, nossa força, nossa esperança.
Neste movimento de perda pelo caminho mais longo da diferença do momento histórico, poderemos redescobrir a pobreza como essência do cristianismo. Será o anonimatoa pobreza espiritual que hoje nos será pedida? Será, talvez, um tempo de deserto e de jejum para deixar respirar a fé; um ritmo de silêncio e de abrandamento do nosso dizer, das nossas afirmações demasiado seguras e englobantes; um compasso de espera e de acesso renovado ao tesouro ao qual procuramos dar corpo; uma oportunidade para recompor fórmulas breves de fé, histórias biográficas de Deus connosco que exponham o que nos é caro, o que nos toca a alma e alimenta o coração e o intelecto.
Sim, poderá tratar-se de uma pobreza profética que já não passará tanto pela posse de coisas e de propriedades, para ser pobreza de lugares e de identidade religiosa, psicológica ou social (S. Morra). Passará a ser a voz de um corpo em trânsito, exposto à instabilidade das muitas fronteiras que hoje cruzamos. Não contará com a segurança do sistema, a reserva da identidade garantida e reconhecida, a glória da tradição, o reconhecimento público da instituição e da sua autoridade, mas ganhará forma e articular-se-á, de modo mais modesto, na biografia de cada crente, no ritmo de cada grupo. Reaprenderemos, assim, a viver mais de Deus e da frescura do Evangelho que do reconhecimento público, dos benefícios sociais, da grandeza das realizações. A ausência far-nos-á agir, criar, gerar, escrever...de modo mais livre e fecundo. O que nos falta poderá tornar-se condição de possibilidade para o que ainda virá. (...)
O cristianismo realiza-se em práticas crentes
A indeterminação não é uma virtude cristã (M. de Certeau): a indeterminação dos bons sentimentos que consiste em avançar como se as mudanças, as diferenças e os conflitos não existissem (movemo-nos como se a realidade não fosse como é); a indeterminação da sedução que se rende acriticamente aos fluxos de gostos e de interesses dominantes; a indeterminação de um universalismo que supõe e se atribui a si mesmo uma totalidade que desconsidera as reais diferenças.
Ligada a esta indeterminação está o facto de, com a modernidade, o cristianismo se ter desequilibrado para o lado do conteúdo, do saber e dos enunciados, isto é, das crenças a manter ou a reformar, como se existisse uma essência, simplesmente intemporal, num determinado lugar sem lugar e bastasse encontrar-lhes expressões mais adequadas, uma linguagem nova. Hoje, parece importante recuperar a operatividade e fecundidade das práticas crentes que são bem mais do que a simples aplicação de uma doutrina. São, antes, um modo de proceder, um estilo de vida e de exercício de fé que realiza deslocações, por vezes silenciosas, outras vezes bruscas, no modo como nos compreendemos cristãos.
Passando dos enunciados de fé para as práticas crentes, a sua dimensão comunitária merecerá particular relevo. Parece pouco pôr todo o peso na consciência e na adesão individual, habitualmente para invetivar contra uma pretensa falta de boa vontade, de empenho e de preparação dos cristãos (habitualmente, dos leigos), quando em muito casos, essas mesmas atitudes são fruto de práticas eclesiais passadas (teremos coragem para reconhecer que muitos dos frutos que estamos a colher são, também, o resultado do modo como semeámos?). Precisaremos de reparar as práticas comuns. Por exemplo, como é que a liturgia realiza, de facto, a comunidade?; de que modo se organizam as dioceses e as paróquias e que tipo de Igreja, realmente, testemunham?; que vitalidade evangélica testemunham muitas das comunidades religiosas, na realidade?; a capacidade ou incapacidade de trabalhar, efetivamente, em conjunto, o que diz na nossa fé da fecundidade da presença do Espírito do Ressuscitado entre nós? Se o cristianismo tentasse enfrentar a crise presente reformulando, apenas, o discurso dirigido à mudança dos indivíduos, sem ser capaz de dar corpo a práticas comunitárias que testemunhem a vitalidade do Evangelho, possivelmente, estaria, ainda, a resistir a deixar-se atravessar pela crise como possibilidade instauradora de um corpo renovado. (...)
José Frazão Correia, SJ
Teólogo, professor da Universidade Católica Portuguesa
In Brotéria (outubro 2011)
© SNPC | 18.01.12