quinta-feira, janeiro 26, 2012

FÁTUOS

“Abria-se a noite como uma romã”
José Eduardo Agualusa, in Milagrário Pessoal, p. 108.


um fogo sem artifícios
estrelas pálidas e ululantes
no céus como só olhos de aves
as poderiam espalhar

estendidos na frescura dos beirais
escorre dos lábios o oiro
a que habituaste a rosa,
o que tens para nos dar
agora ó noite ardente,
rubra nas velas
que se acendem remotas
no rufar das cigarras

senão a explosão dos teus dedos
como grãos de romã?

26/01/12


segunda-feira, janeiro 23, 2012

PASSEIO DOMINICAL

No domingo chega-se tarde ao trabalho
as mães atrasam-se nos beijos que dão
aos filhos, de rostos luminosos de maçã
os passos atrasam-se
numa meticulosa triangulação de ar
uma perna que sucede ao chão
e este a outra perna

no domingo entra o jardim
pela crianças dentro
— que bom que hoje está soalheiro,
mas mesmo que neve
as ruas dançam em perfeita comunhão
no coração que guardam no olhar

no domingo suja-se louça de porcelana

chora a pele no choque contra a outra pele
como o amor do mar com a rocha
primacial, portentoso

no domingo é o vento que envolve
os braços e todos levanta em uníssono
num cântico raro
nos corações ao alto
a Deus nas alturas

23/01/12

domingo, janeiro 22, 2012

CARTA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA*

Exmo. Sr. Presidente da República,  

Sempre os Portugueses se habituaram a ver nos chefes de Estado, tanto em monarquia como na República, não apenas a figura paternal, daquele que está com eles nos bons e maus momentos. Uma figura que pudessem identificar como protector, que combatesse com eles, e fosse à sua frente, nas guerras contra inimigos externos e internos. Que os amasse. Mas também a quem amassem, em quem vissem um exemplo de conduta e ética, de casamento feliz entre valores e conduta.  

O Sr. Presidente pretendeu inserir-se nessa linha de mito, procurando transmitir de si a imagem de pessoa honesta, e última reserva moral da Nação. O Sr., porém, tem-nos grandemente decepcionado. Foi obrigado a renunciar ao seu vencimento de Presidente, em virtude uma lei que, justamente, impedia os detentores de cargos públicos de acumular vencimento com pensões. Fê-lo por isso, claramente, porque a tal foi obrigado. E escolheu o valor que maior rendimento lhe dá: a acumulação de pensões. Esperava-se do detentor da mais alta magistratura nacional o exemplo pró-activo, que o tivesse feito antes da implementação da tal lei, voluntariamente. Isto, sim, constituiria um exemplo. Isto, sim, daria um sinal aos seus concidadãos de que se identificaria com eles, e que se poderiam identificar com o senhor. Mostrou, afinal, que é um cidadão como os outros: nem melhor nem pior, que até se pauta pela conveniência pessoal, e segundo este padrão usa a lei. Tivesse-o feito, teria dado prova de sensibilidade, de generosidade, de sabedoria, de virtude cristã, de que é Presidente para servir, não para ser servido. Todavia, o cidadão, que é Presidente, que dá lições aos outros era um dos tais que acumulava, e só deixou de o fazer porque, infelizmente para ele, a tal foi legalmente obrigado.  

Mais recentemente, antes da aprovação do Orçamento de Estado, manifestou apreensões quanto aos sacrifícios impostos aos cidadãos a que obriga a aplicação do mesmo. Porém, tendo tido a oportunidade de agir em consciência e em concordância com as suas declarações e apreensões, vetando-o, suscitando a fiscalização preventiva da respectiva constitucionalidade, não o fez, tendo-o promulgado liminarmente. Donde, a sensação que fica para os Portugueses é de o seu Presidente ser uma figura que custa muito dinheiro ao erário público, que fala, por vezes bem, mas que não age quando se impõe. Uma magistratura inútil, inepta, e pior, inconsequente, pois, ao falar, espera-se que aja em conformidade. E abstém-se de o fazer.  As suas últimas declarações, contudo, excederam as expectativas. O senhor disse, e cito o que vem transcrito pelos órgãos de comunicação social: "tudo somado, o que irei receber do Fundo de Pensões do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Aposentações, quase de certeza, não vai chegar para pagar as minhas despesas, porque como sabe eu também não recebo vencimento como Presidente da República." O que o senhor recebe de pensões, acumulado, são, ao que consta, 10 042 €. A este montante acrescem outros rendimentos seus, publicamente divulgados. Não há memória de tal honestidade nas palavras de um político em Portugal, que assim mostra o íntimo da sua alma. E de tão grande afronta e insulto aos milhares e milhões de concidadãos, que vivem com 5 % mensais ou menos do que isso, e com isso têm de sustentar famílias, pagar rendas, comer, tratar da sua saúde. Ou aos que nem isso têm, pois se vêem no desemprego de longa duração. Aos que, mesmo trabalhando, têm mais despesas do que receitas, e por isso passam fome. Como podem esses Portugueses fazer face às suas despesas, se o senhor, com os seus rendimentos mensais, não consegue? Permita que lhe diga, Sr. Presidente: não será caso para pensar que, quiçá, o senhor não tem vivido acima das suas possibilidades? Não será caso para, como cidadão, fazer o mesmo que os seus concidadãos: reduzi-las?  

Não há comentários possíveis à inenarrável declaração de V. Exa.. É bom que saiba, Sr. Presidente, que o sr. acabou por dar o golpe de misericórdia na já pouca confiança e ligação que os cidadãos tinham com os políticos que os têm governado.  E é em nome da liberdade de consciência e de expressão, e do sobressalto cívico que V. Exa. invocou aquando da tomada de posse para o seu segundo mandato, que, como cidadão livre, e por acaso que se identifica com a área político-ideológica da qual V. Exa. é oriunda, que apelo a que resigne ao cargo. V. Exa. deixou de ser o Presidente de todos os Portugueses. As relações entre Presidente e os seus concidadãos fica manchada pela vergonha, pelo sentimento da traição daquele para com estes. Deixou moral e politicamente de ter condições para tal. A menos, evidentemente, que V. Exa. tenha uma explicação para dar aos Portugueses. A menos que se tenha expressado mal, por omissão, e não se estivesse a referir às suas despesas pessoais e familiares, mas às inerentes com o cargo e o sustento dos serviços agregados à sua Casa Civil e das instalações que, por inerência de cargo, ocupa. Dou-lhe este benefício da dúvida, e honestamente tenho, como têm os meus e seus concidadãos, de considerar a hipótese do contraditório. Mas, se nada for dito da sua parte, se se mantiver o silêncio, se nada tiver a nos dizer, é minha opinião (e estou certo de que da generalidade dos Portugueses) que V. Exa. faria bem a si próprio, e a todos os Portugueses, em poupá-los a quatro longos e penosos anos deste sentimento de vergonha, até ao fim do seu mandato, resignando de imediato ao cargo de Presidente da República Portuguesa.   Com os melhores cumprimentos,  


Rui Duarte  

*Texto enviado por correio electrónico para a Presidência da República: belem@presidencia.pt. Coloquei no assunto "exemplo".

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Atravessar a crise: notas para uma prática crente

«Vivemos numa época de trânsito, como sempre»
O mundo mudou. Este é um dado de facto, mas não é um dado novo, porque muda sempre. É próprio do tempo fluir e mudar, assim como o é de todos os corpos sujeitos às suas leis. Neste mundo que, hoje, está tão mudado, o cristianismo também é forçado a redesenhar o seu lugar, precisamente porque aquele que ocupara nos últimos séculos deixou de lhe ser reconhecido. Do centro passou para as margens. Mas o facto do cristianismo dever confrontar-se com o tempo em mudança e que o desinstala, também não é novo. Dois mil anos de história é um tempo muito longo e rico de muitas mudanças e de aquisição de novas qualidades. O que somos hoje é o resultado de uma já longa história, bela e dramática, mas, ainda, inacabada de encarnação do Evangelho de Jesus na vida de pessoas e de grupos. Quanta diferença há entre os três primeiros séculos e a Igreja de Trento; quanta diferença entre a Igreja do início do segundo milénio e a que saiu do Vaticano II. E, porém, continua a ser a mesma Igreja de Jesus Cristo, realizada no fluir do tempo e na mudança dos lugares, em tantas formas de vida e de culto, de pensamento e de arte. Também por isto, os discursos de regresso e de recuperação do passado, como se de um paraíso perfeito se tratasse, sem tempo nem crises, não é sem ambiguidade. A primeira pergunta que ocorreria colocar seria esta: a que momento do passado e a que forma eclesial deveríamos regressar, já que o nosso longo património testemunha tantas?; porquê regressar à Igreja pré-Vaticano II e não à Igreja pré-Trento, por exemplo?
A memória (arriscada, disse o teólogo J. B. Metz) da qual o cristianismo vive é a boa notícia da salvação que os evangelhos atestam poder realizar-se no presente de cada homem e mulher, de todos os tempos e lugares, tal como se realizou na experiência de fé dos primeiros discípulos. A memória cristã vive da promessa de que o dom de vida que Deus nos oferece em Jesus é capaz de se realizar na biografia de cada pessoa e na configuração de cada grupo. Por isso, tal como no passado (em cada momento do nosso passado comum), a promessa do início assumirá uma forma concreta no momento histórico que é o nosso.
Assim, neste tempo de fratura e de incerteza, mais do que preocupados com o reconhecimento público e o número de fiéis que enchem ou esvaziam as igrejas, conviria começar por perguntar onde poderemos reencontrar um Deus que parece ter passado para o baú das memórias vagas e, finalmente, irrelevantes. Onde é que hoje habita o Deus cristão? Quais poderão ser os sinais da sua passagem, nos dias de hoje, talvez, mais discreta? Sabíamos que vivia no centro, que dirigia as consciências e os grupos, que garantia claramente uma estrutura de representantes e de ritos, que premiava bons e castigava maus. Mas, hoje, quando os centros, as consciências, as estruturas, os céus e os infernos se fragmentam e dissipam, onde habitará? Que lugar Lhe restará? Que direção deveríamos tomar para ir no seu encalço? Talvez O possamos pressentir mais humilde, mais como espaço de respiro e de encontro possível entre diferentes. Poderá ser até que não nos possa ajudar muito. Nesse caso, poderíamos ajudá-Lo nós, como diria Etty Hillesum em plena perseguição nazi, e compreender, assim, melhor, como o divino não está em deixar-se conter pelo maior mas em deixar-se identificar pelo mais pequeno. E poderíamos reconhecer que, de facto, não era digno, nem de nós nem de Deus, instrumentalizá-Lo como simples tapa buracos das nossas insuficiências e desilusões (D. Bonhoeffer).
Tal como Elias (l Re 19,9ss), à entrada da caverna da nossa fuga regressiva, poderemos ter que reconhecer a presença de Deus onde pareceria não poder estar. Talvez já não nos lugares centrais e esperados: nem no vento impetuoso, nem no terramoto demolidor, nem no fogo abrasador, mas na brisa ligeira de um outro lugar improvável, mas igualmente capaz de reconciliar com a missão de anunciar o Senhor. (...)

O momento presente é tempo favorável
Este é o tempo favorável para o cristianismo. Não se trata de uma afirmação psicologicamente otimista, mas da convicção teológica de que não há um momento ideal para o anúncio do Evangelho, precisamente, porque o Evangelho é dom de vida para cada tempo. Por isso, cada momento é momento propício para a realização da palavra e do gesto de Deus realizado em Jesus.
Hoje, como no passado, temos dois grandes dons que precisamos de conservar em conjunto: um, o dom de Deus, atestado nos evangelhos como dádiva para cada homem e para cada mulher de todos os tempos e lugares; o outro, o momento presente, com os seus contornos específicos, como o corpo real para a realização do dom de Deus. Se perdêssemos o primeiro, perderíamos o fermento que leveda a massa. Se perdêssemos o segundo, não teríamos massa para que, com o fermento, se possa fazer pão. O Evangelho é dom de vida para cada tempo; cada tempo específico tem a virtude de poder acolher e dar corpo - um corpo concreto - ao Evangelho. Assim, e como dizia acima, para atravessar o momento presente de fratura, parece pouco querer recuperar, simplesmente, um qualquer fragmento do passado e do seu património, considerado mais perfeito e, pretensamente, mais fiel, de modo a contrariar a degradação atual dos valores e das estruturas, como se toda a verdade e justiça na nossa fé estivessem às nossas costas e nada de nosso nos fosse dado oferecer. A cidade nova que há de vir e em cuja construção participaríamos (cf. Ap 21, 9ss) perde para o paraíso perfeito dos inícios que só nos caberia receber passivamente (cf. Gn 2,4ss). Mas também parece pouco absorver acriticamente a linguagem e o gosto do tempo, acabando por oferecer uma fé fácil e segura como resposta e solução para todos os problemas, como caminho garantido de felicidade e terapia de todos os desconfortos. Para atrair mais uns quantos, seria muito pouco promover uma fé simpática, à medida das expectativas: não custaria quase nada e garantiria quase tudo. Mas, claro, nem a fé nem a vida admitem este nivelamento. São imensamente mais complexas e dramáticas. A experiência da fé, como o ato de viver, é visceral. Se não for testemunhada como ques­tão de vida e de morte - questão verdadeiramente vital -, não chegará a persuadir como dom, em cujo reconhecimento e adesão se decide uma existência: o corpo e o espírito, os afetos e a inteligência, a vontade e a liberdade, a identidade e as relações.

A fé atravessa os cumes e os abismos da existência humana
Recuperar o contacto com a densidade elementar e biográfica da existência humana, com todas as suas limitações, ambiguidades e tensões, deveria ser uma das preocupações centrais do testemunho cristão: das formas de vida e de celebração, de organização, de criação artística e de pensamento. Para tal, precisaríamos de abandonar chavões grandiloquentes, moralismos fáceis, paternalismos irrelevantes, falsos consensos, boas intenções que, no fundo, nem acolhem a força transformadora do Evangelho, nem recolhem a riqueza da Tradição eclesial, nem enfrentam o concreto da realidade, com as suas ambiguidades e promessas.
Ocorrerá recuperar a densidade dos grandes lugares e movimentos da vida humana (curiosamente, as artes e, entre elas, a literatura ou o cinema, parecem perceber isso melhor que muita catequese): nascimento e morte, sexo e trabalho, celebração e dor, educação e economia, as coisas primeiras e últimas da existência. Estes são os ritmos e os lugares onde a vida de cada um se decide e a carne, na qual o mistério de Deus incide, na qual se diz e age, se é que a verdade cristã se apresenta como manifestação real e não apenas como afirmação formal de uma verdade intemporal. Mas nós, nas nossas catequeses e iniciativas, no nosso estilo de vida comunitário, na nossa prática litúrgica, parece que perdemos o contacto com eles e a sabedoria para os viver como lugares de bênção e de graça. Porém, sem eles, o cristianismo tornar-se-á abstrato, banal, patético até. Portanto, sem densidade. Finalmente, irrelevante. Precisará, por isso, de reaprender a realizar-se entre Deus e os ritmos e lugares do viver quotidiano, entre a transcendência e o mundo, o absoluto e o particular, a origem e o destino.
O cristianismo estará à altura do seu tempo se for capaz de viver, de celebrar, de pensar e, assim, de realizar o Evangelho como palavra e gesto que saiba a vida e que faça viver. Não a vida ideal, mas a vida pequena, ferial, quotidiana. Para isso, precisa de usar formas de vida, de linguagem e de pensamento nas quais homens e mulheres, social e culturalmente situados, se revejam. No entanto, não poderá deixar de realizar a contestação profética de fixações, idolatrias, abstrações e não deixará de forçar os limites, de alargar o horizonte, de escavar novas profundidades. Mas fá-lo-á como bênção capaz de recolher, descrever e promover o que de melhor cada biografia e cada grupo tem para dar em contacto com a graça que salva.

O cristianismo será presença qualificadora se for presença qualificada
Quando o espaço do viver comum já não aceita ser plasmado pelo laço íntimo entre o cristianismo e o corpo social, resta à fé aquilo que, na realidade, lhe é essencial e que, talvez, pela segurança de um reconhecimento social garantido, tinha descurado: o testemunho. Este é a sua fragilidade e a sua força.
O cristianismo só poderá qualificar o viver individual e comum se se oferecer no testemunho de biografias e de grupos qualificados pelo Evangelho. Se Jesus é a entrega de Deus ao crédito que o ser humano lhe queira reconhecer (este é o modo que Deus escolheu para Se revelar), a Igreja não tem outro modo de manifestar o seu Senhor que não seja o de se expor ao crédito alheio, oferecendo-se à liberdade de cada um de O reconhecer como digno de confiança. Assim, reaprenderemos que a verdade de que vivemos não é de ordem lógico-gramatical ou de estatuto social, mas de ordem vital: é o reconhecimento e a adesão coerente Àquele - Jesus de Nazaré - que se apresenta historicamente na fragilidade de um corpo humano, exposto, por isso, à contingência de lugares, de tempos, de relações concretas.
É pedido ao cristianismo que esteja à altura do Evangelho que anuncia, não como ideologia, mas como graça que salva enquanto incide e transforma biografias e grupos, concretamente situados, assumindo, também ele, uma configuração histórica determinada (um corpo). Ao mesmo tempo, não poderá aceitar ficar abaixo das realizações do momento presente, nos mais variados campos: das artes às ciências, da filosofia à economia, do pensamento ético às políticas sociais.

A pobreza determina a qualidade da presença do cristianismo
A perceção da nudez e da confusão poderá dar lugar à consciência do dom. Quando parecia que estávamos a perder algo de essencial, afinal, estávamos a ser agraciados com a dádiva maior da pobreza, lugar propício para riquezas maiores. É verdade que no mundo ocidental nos estamos a tornar uma minoria sem esplendor particular, expostos a um tempo que muda vertiginosamente e que não nos pede opinião e, ainda menos, autorização. Por vezes, parece que deveríamos pedir desculpa por ainda existirmos, já que, do nosso passado, só chegariam, até hoje, malfeitorias. Mas, ad intra, também nos faltam formas de oração, de linguagem, de celebração e de representação da presença de Deus. Estamos, por isso, entregues a nós próprios. E isto parece muito pouco.
Ficamos expostos à nossa nudez que também passa, hoje, por acolher muitas diferenças, às vezes as mais bizarras, e a estranheza de tantas coisas e pessoas. Dar lugar ao outro -uma pessoa ou um momento histórico - é sempre dar lugar à morte. Na realidade, o que me chega com o outro é a minha morte, porque ele é radicalmente o não-eu. A experiência do outro, como a experiência de Deus, em muitas passagens da Escritura, é terrível, precisamente, porque não suporta ser tratada com o sentimentalismo ou a ideologia daquele diálogo que, na verdade, o nega, procurando seduzi-lo, neutralizá-lo, capturá-lo ou evitá-lo (M. de Certeau). Porém, no cristianismo, o encontro com o outro parte da confiança de que se receberá dele, não só a morte, mas a vida. Dar-lhe lugar é também receber a graça de participar numa vida que se supera a si própria para ir mais longe. Uma vida que não é feita para ser capitalizada para a eternidade, mas para ser dada e perdida no mesmo momento em que é servida (S. Morra). Não existe experiência cristã que não atravesse o combate de uma hospitalidade ferida e jubilante, de uma vida ligada a um desaparecimento. Estaremos à altura desta perda? Queremos atravessá-la e receber dela outras formas de visibilidade? Este é o risco real da dura prova da morte. O que seremos? A Deus nos confiamos, nossa força, nossa esperança.
Neste movimento de perda pelo caminho mais longo da diferença do momento histórico, poderemos redescobrir a pobreza como essência do cristianismo. Será o anonimatoa pobreza espiritual que hoje nos será pedida? Será, talvez, um tempo de deserto e de jejum para deixar respirar a fé; um ritmo de silêncio e de abrandamento do nosso dizer, das nossas afirmações demasiado seguras e englobantes; um compasso de espera e de acesso renovado ao tesouro ao qual procuramos dar corpo; uma oportunidade para recompor fórmulas breves de fé, histórias biográficas de Deus connosco que exponham o que nos é caro, o que nos toca a alma e alimenta o coração e o intelecto.
Sim, poderá tratar-se de uma pobreza profética que já não passará tanto pela posse de coisas e de propriedades, para ser pobreza de lugares e de identidade religiosa, psicológica ou social (S. Morra). Passará a ser a voz de um corpo em trânsito, exposto à instabilidade das muitas fronteiras que hoje cruzamos. Não contará com a segurança do sistema, a reserva da identidade garantida e reconhecida, a glória da tradição, o reconhecimento público da instituição e da sua autoridade, mas ganhará forma e articular-se-á, de modo mais modesto, na biografia de cada crente, no ritmo de cada grupo. Reaprenderemos, assim, a viver mais de Deus e da frescura do Evangelho que do reconhecimento público, dos benefícios sociais, da grandeza das realizações. A ausência far-nos-á agir, criar, gerar, escrever...de modo mais livre e fecundo. O que nos falta poderá tornar-se condição de possibilidade para o que ainda virá. (...)

O cristianismo realiza-se em práticas crentes
A indeterminação não é uma virtude cristã (M. de Certeau): a indeterminação dos bons sentimentos que consiste em avançar como se as mudanças, as diferenças e os conflitos não existissem (movemo-nos como se a realidade não fosse como é); a indeterminação da sedução que se rende acriticamente aos fluxos de gostos e de interesses dominantes; a indeterminação de um universalismo que supõe e se atribui a si mesmo uma totalidade que desconsidera as reais diferenças.
Ligada a esta indeterminação está o facto de, com a modernidade, o cristianismo se ter desequilibrado para o lado do conteúdo, do saber e dos enunciados, isto é, das crenças a manter ou a reformar, como se existisse uma essência, simplesmente intemporal, num determinado lugar sem lugar e bastasse encontrar-lhes expressões mais adequadas, uma linguagem nova. Hoje, parece importante recuperar a operatividade e fecundidade das práticas crentes que são bem mais do que a simples aplicação de uma doutrina. São, antes, um modo de proceder, um estilo de vida e de exercício de fé que realiza deslocações, por vezes silenciosas, outras vezes bruscas, no modo como nos compreendemos cristãos.
Passando dos enunciados de fé para as práticas crentes, a sua dimensão comunitária merecerá particular relevo. Parece pouco pôr todo o peso na consciência e na adesão individual, habitualmente para invetivar contra uma pretensa falta de boa vontade, de empenho e de preparação dos cristãos (habitualmente, dos leigos), quando em muito casos, essas mesmas atitudes são fruto de práticas eclesiais passadas (teremos coragem para reconhecer que muitos dos frutos que estamos a colher são, também, o resultado do modo como semeámos?). Precisaremos de reparar as práticas comuns. Por exemplo, como é que a liturgia realiza, de facto, a comunidade?; de que modo se organizam as dioceses e as paróquias e que tipo de Igreja, realmente, testemunham?; que vitalidade evangélica testemunham muitas das comunidades religiosas, na realidade?; a capacidade ou incapacidade de trabalhar, efetivamente, em conjunto, o que diz na nossa fé da fecundidade da presença do Espírito do Ressuscitado entre nós? Se o cristianismo tentasse enfrentar a crise presente reformulando, apenas, o discurso dirigido à mudança dos indivíduos, sem ser capaz de dar corpo a práticas comunitárias que testemunhem a vitalidade do Evangelho, possivelmente, estaria, ainda, a resistir a deixar-se atravessar pela crise como possibilidade instauradora de um corpo renovado. (...)

José Frazão Correia, SJ
Teólogo, professor da Universidade Católica Portuguesa
In Brotéria (outubro 2011)
© SNPC | 18.01.12 

domingo, janeiro 15, 2012

EXTENSÃO DOS LÁBIOS

Só os lábios respiram.
Orlando Neves

Para onde se estendem os lábios
para o exílio do som à beira das fráguas
donde nascerá a palavra

estendem-se na respiração
ar que entra ar que sai
que semeia árvores nas nossas mãos
e colhe pássaros de asas limpas

para onde se estendem os lábios
sopra um vento que fala suavemente
ouve-se o seu convite
para longas conversas de amigos
à mesa dos rios

para onde se estendem os lábios
não cabem as saudades o mar
deposita novas cores
sobre os ombros
tem ainda e sempre a mesma sedução
a mesma canção modulada nas ondas

só os lábios respiram
no sal dos dentes

15/01/12

EXTENSÃO DOS LÁBIOS


Só os lábios respiram.
Orlando Neves

Para onde se estendem os lábios
para o exílio do som à beira das fráguas
donde nascerá a palavra

estendem-se na respiração
ar que entra ar que sai
que semeia árvores nas nossas mãos
e colhe pássaros de asas limpas

para onde se estendem os lábios
sopra um vento que fala suavemente
ouve-se o seu convite
para longas conversas de amigos
à mesa dos rios

para onde se estendem os lábios
não cabem as saudades o mar
deposita novas cores
sobre os ombros
tem ainda e sempre a mesma sedução
a mesma canção modulada nas ondas

só os lábios respiram
no sal dos dentes

15/01/12

terça-feira, janeiro 10, 2012

DÍPTICO DA ADÚLTERA

"Moisés, na lei, mandou-nos apedrejar tais mulheres até à morte. E tu, que dizes?
Evangelho segundo João 8:5

ELES

dizem que és uma adúltera

dizem que te esqueceste à porta
da chave que te abre a rosa

dizem que a vela descerrou
o mastro
e a ele te vergaste
que embebeste a carne
em leite e mel de estranho

dizem que a redondez dos teus seios
é ofensa para os próprios seixos
que eles emergiam das mãos


EU

dizem que direi eu
eu nada direi, direi
que dizem as bocas do que lhes calam as vozes
direi que neste chão cabe o sangue e o ouro
dir-te-ei, a ti, que te devolvo o que perdeste
ou abandonaste, não importa
o coração isento de pedras
o rosto lavado
guarda-os assim
sem olvidar as lágrimas

10/01/12

domingo, janeiro 01, 2012

O CAMELO E A AGULHA

“Então Pedro dirigiu-se a Jesus: «Olha que nós deixámos tudo para sermos teus discípulos.» Jesus respondeu: «Pois eu garanto-vos que todo aquele que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa e por causa do evangelho, receberá cem vezes mais, ainda neste mundo, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, e também perseguições. E no outro mundo receberá a vida eterna.” Evangelho segundo Marcos 10:28-30

Quem não conhece o célebre símile hiperbólico proferido por Jesus Cristo, em que declara, em diálogo com os seus discípulos, ser mais difícil entrarem ricos no Reino de Deus do que um camelo entrar no buraco de uma agulha (v. 25)? Uma impossibilidade empírica seria menor do que uma outra (v. 27), ao contrário das expectativas sociológicas de então, que não viam a justiça (no sentido de qualidade e estado de rectidão perante Deus) pelo estatuto social ou financeiro, mas pela fidelidade a certas normas de conduta, a Lei mosaica. Este diálogo remata e constitui o epimythion de um outro diálogo, concluído poucos segundos antes, entre Jesus e um jovem rico, cumpridor da Lei e das tradições dos seus maiores, que procurava aprofundar a sua relação com Deus e confirmar a sua posição de justiça aos olhos dele. Para Pedro e os demais discípulos, aquele jovem teria parecido, pelo estilo de vida, merecedor do beneplácito divino. E a verdade é que eles viam a relação com Deus numa perspectiva de do ut des, de negócio comercial, de que o cumprimento de determinadas regras pelo homem implica Deus e o força a retribuir na devida proporção. Veja-se, no passo paralelo do Evangelho segundo Mateus, a afirmação transcrita de Pedro, que reforça esta noção (19:27): “que recompensas teremos?”. Isto mostra que a noção de deve-e-haver subjazia ao sentido dos relacionamentos entre homens e Deus e entre homens.
As palavras de Jesus contêm, por um lado, preocupações sociais e o sentido da justiça equitativa, económica e social. E promessas, grandiosas e maravilhosas. Afinal, Deus recompensa. E numa medida que desafia a imaginação e as melhores expectativas. Deixar tudo, família, bens, a segurança e o conforto, merecem, da parte de Jesus e da causa do Evangelho. E em copiosa: cem vezes mais, cifra a não entender à letra, como conta certa, mas como linguagem trópica, figurada, como a hipérbole do camelo e do buraco da agulha, significadora de “abundância”. Tanto para o Mestre como para os discípulos e para os antigos biógrafos de Jesus, como também para o leitor hodierno, uma das facetas do Evangelho, esse poliedro, é social. E no sistema exegético sociológico, a dialéctica riqueza/pobreza impõe-se como nuclear. Lembremo-nos da parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:19-31; cf. também 12:13-21; 6:20). Na concepção da história sobretudo de Lucas (não exclusivamente, mas em especial), o rico representa o excluído, ao passo que o pobre representa o incluído no Reino. Como remata Jesus no episódio aqui em apreço (Marcos 10:31), os primeiros serão relegados aos últimos lugares, e os que se encontram em último, serão promovidos aos primeiros. Tudo isto, pela acção da justiça retributiva.
As palavras de Jesus estão aí. Mas como em tudo o que tem a ver com a Bíblia, e com qualquer texto, ele espera ser interpretado. O que aqui se pretende é dar um contributo para tal. Embora modesto e pessoal, porém atento, reflectido e responsável.
Nos dias de hoje, a tensão dos pólos inverteu-se. Na chamada Teologia da Prosperidade (na pura, dura e simplória versão, pois o autor destas linhas crê na prosperidade como um desígnio de Deus para os seus filhos), quem tem fé é rico e quem ser rico é indício, sinal da fé e da posição de justo face a Deus; pobre, pelo contrário, é o maldito, o que se não libertou das amarras da maldição da Lei, seja por falta de fé, seja pela ignorância da vontade e palavra divina. Como quer que seja, o pobre é-o responsavelmente, culpa sua. No entendimento deste sistema teológico, para o qual a fé e a bem-aventurança se afere pelo número de algarismos à esquerda no extracto bancário (contrariamente à bem-aventurança lucana 6:20), o jovem falhou em perceber que Jesus lhe estava a prometer que, se abdicasse de toda a sua riqueza (sinal de bênção), lho retribuiria com muito mais bênção, o converteria de milionário em multimilionário. Tão-somente ele tivesse entendido (e bem) que a verdadeira riqueza é interior, do coração, da obediência à chamada de Deus, e que esta pode implicar a renúncia. Mas que o bom Pai que é Deus (Marcos 10:18), em última instância, não deixa de recompensar, e de pagar nos mesmos géneros e espécies, conquanto que proporção mais generosa, aquilo que nos pede: se deixámos família, dar-nos-á mais e maior família; se deixámos riquezas, emprego, bens, dar-nos outros, ainda maiores e melhores.
Não digo que Deus não recompense assim, exactamente assim. Que ele nos possa enriquecer de facto. E que até o deseje. Deixai-me dizer que sim, que o creio, que prefiro e escolho crer, esperar, sonhar e orar por isso. Prefiro ser rico, ter dinheiro para não dizer mal da minha vida, não estar aflito para pagar contas, para que a minha família tenha sustento garantido. Gosto de pensar que, como o próprio Jesus disse nas Bem-aventuranças (Mateus 6:33), se me empenhar primeiramente em viver para Ele e o seu Reino, ele garante que cuida de mim. E mais, muito mais: que, na provisão que Deus me dá, tenho recursos para dar de comer aos pobres, casa aos sem-abrigo, para distribuir pelas vítimas da injustiça, para que a mensagem de esperança e vida em Cristo lhes chegue. O que me recuso a aceitar é que esse seja o alvo tanto de Deus como que o deva ser dos seus filhos; que a qualidade de vida cristã seja aferida pela quantidade de finanças e património. E que riqueza e ser rico signifique exactamente que todos serão empresários de sucesso, banqueiros, e tudo o mais que habitualmente se considere como signo de prosperidade. Como pode, por conseguinte, ser a promessa profética de Jesus cumprida? Como em tudo o que é linguagem profética, é intrinsecamente trópica, e assim há que interpretá-la. Seria engraçado pensar que um homem ou mulher já adultos, sem pais, possa vir a ter mais irmãos e irmãs, e pais e mães. Ou um homem idoso, ou uma mulher que já passou pela menopausa, possa vir a ter mais filhos. Ou o que interessa a crentes urbanos vir a ter terras? E cem vezes mais?
O próprio Jesus, ao ser-lhe anunciado a mãe e os irmãos o desejavam ver, respondeu que mãe e irmãos são quem ouve o seu ensino e o pratica (Mateus 16:49). É impossível não entender estas palavras como tropos: é à familiaridade espiritual que se refere, que advém de crerem, confessarem e viver para o mesmo Senhor e Pai. Ser irmãos em Cristo. O sentido destas palavras parece pois esclarecer o daquelas outras, com que comenta a recusa do jovem rico à renúncia. Ao novo cristão é dada uma nova família, todos aqueles que em Cristo Jesus colocam fé e esperança enquanto salvador, segundo a mensagem bíblica, são integrados na família de Deus, como irmãos e irmãs, mães, pais, filhos e filhas espirituais.
E as terras, e as casas? Pode ser que alguns cristãos tenham visto o seu património crescer depois se aceitarem a salvação proporcionada por Cristo. Parte deles são pregadores. E não digo que desonestamente. Mas a grande maioria não. Os cristãos de África? De países asiáticos, ou da América hispânica? Estão eles, os mais pobres, desagregados do Reino? Em que sentido se deve entender a profecia de Jesus? Se partirmos do princípio de que esta não está invalidada, mas se cumpre. Certo é que alguns passos bíblicos declaram a soberania divina sobre a Terra e tudo e todos quantos nela existem, e que essa soberania foi e é delegada. [salmo 2?] É pois lícito, fazendo fé na profecia de Jesus, que os seus filhos têm direitos, na qualidade de herdeiros. O facto de não vermos que todos sejam proprietários, patrões em vez de empregados e locatários é que coloca questões.
Talvez o problema seja, mais uma vez entre tantas, de interpretação, de vício de leitura. Por outras palavras, os juízos, cultura e grelhas de análise prévios do intérprete condicionam a interpretação — dado consabido da exegese bíblica e literária. O conceito de ser dono, proprietário, terratenente pode não ter variado muito em relação ao sentido que teria então, pelo que o parece aqui estar em questão é que as palavras de Jesus podem ser lidas dentro do registo trópico, e não apenas literal.
Como contra-prova, ponderemos alguns textos neotestamentárias. Primeiramente, uma experiência da Igreja pristina, comummente aplaudida entre cristãos como a experiência cristã mais genuína, porque vivida e estabelecida sobre o testemunho da palavra e do exemplo do próprio Jesus e dos seus apóstolos, sendo por consequência tomada como digna de imitação, ou no mínimo de inspiração mesmo nos nossos dias (em Actos 2:43-45):

“Os crentes viviam unidos e punham em comum tudo o que possuíam. Vendiam as suas propriedades assim como outros bens e dividiam o dinheiro entre todos, de acordo com as necessidades de cada um.”

Se esta experiência pode ser tomada como canónico de uma conduta, salta à vista que a propriedade privada não era valorizada. Deixo de lado as considerações por vezes aduzidas à leitura deste texto, segundo as quais esta experiência constituiu um socialismo avant la lettre. Igualmente não preocuparei em justificar o que possa parecer uma depreciação da propriedade privada e a apologia de um colectivismo à maneira socialista. Nem defendo este, como também não aceito que um objecto do passado, seja um evento histórico ou um texto, sejam lidos à luz de grelhas de leitura posteriores. Porém, não queria deixar de chamar a atenção para este aspecto, que é factual: esses primitivos cristãos não colocavam ênfase no ter nem mediam a bênção e favor divinos pela quantidade do ter. Este relato deve surpreender-nos. Os cristãos ricos cumpriam aquilo em que o nosso jovem rico falhara: vendiam os seus bens para dividir os recursos com os socialmente desvalidos. Por outro lado, estes eram alimentados, sustentados, resgatados da fome, da miséria, da condição de sem-abrigo, do esgoto social. Esta era a vida dessa comunidade nascente: uma família acolhedora, em que todos eram objecto de cuidado e atenção, na qual os pobres deixavam de o ser e os ricos nem por isso se convertiam em pobres. Somente uma comunidade organizada nestes moldes, como família, como corpo, poderia funcionar com base na visão do bem comum, sem lugar para invejas, exclusivismos ou preferências. O que resulta, no fim de contas, é o cumprimento, por intermédio dos crentes, daquela promessa proferida por Paulo de Tarso, na sua carta aos cristãos de Filipos (4:19): Deus preocupa-se, e providencia todo o tipo de provisões necessárias à vida dos seus filhos. E esta é a grande promessa a abraçar por eles, não a e que ele tornará todos multilionários, ainda que a provisão divina a alguns possa traduzir na obtenção de um fortuna colossal, embora esta lhe tenha agregada a condição já referida, de que não é um valor nem um fim em si mesmo, mas é meramente instrumental no serviço aos outros. Esta é a esperança em que se deve insistir, e a viver na prática, não a de que todos serão multimilionários, sendo que se alguém o não for, a razão só poderá ser a fé lacunar. Toda a riqueza, do ponto de vista de Jesus, tem tal qualidade e função.
O segundo testemunho é o de Paulo de Tarso, precisamente o versículo citado e os anteriores (vv. 12-19):

“Sei viver na pobreza e também na abundância. Aprendi a viver em toda e qualquer situação: a ter fartura e a ter fome, a ter em abundância e a não ter o suficiente. Posso enfrentar todas as dificuldades naquele que me fortalece. Contudo, fizeram bem em compartilhar as minhas dificuldades. Irmãos filipenses, bem sabem que no início da pregação do evangelho, quando parti da Macedónia, vocês foram a única igreja a ajudar-me. Compartilharam comigo no dar e no receber. Por mais que uma vez, quando eu estava em Tessalonica, me enviaram ajuda para as minhas necessidades. Não é que eu procure ofertas, mas desejo que seja acrescentado o mérito à vossa recompensa. Eu possuo tudo e em abundância. Agora que recebi tudo o que me enviaram por meio de Epafrodito, tenho mais do que o necessário. Essa oferta foi como o perfume de um sacrifício que Deus aceita e lhe agrada. O meu Deus há-de conceder-vos com largueza tudo aquilo de que precisarem, segundo a sua riqueza gloriosa em Cristo Jesus."

Esta confissão pessoal do apostolo dos pagãos deveria ser a lâmina que corta o emaranhado novelo em que a chamada Teologia da Prosperidade, e as suas concepções meramente financeiras da fé, tem envolvido muitas pessoas. O apóstolo não era um magnata, um grande empresário ou banqueiro, e diz ainda mais: conheceu a privação e a abundância, a fome e a saciedade, o conforto de uma e o desconforto do espancamento e da prisão, a pobreza e a riqueza, e, mais do que isso, aprendeu a lidar com essas situações e com estas alternâncias de tal forma que não se deixava cair na depressão nem resvalar para a protesto eram negativas, nem dominar pela soberba e pela senso de auto-suficiência quando eram positivas. O seu testemunho revela um homem que treinou o seu espírito a não mudar de estado em função do que o rodeava, fosse agradável ou desagradável, a reagir com a mesma tranquilidade e desprendimento. Aquilo que ele podia afirmar, em conclusão (versículo citado acima), era a certeza de que o Deus que servia cuidava de que nada lhe faltasse a ele nem a nenhum outro dos seus filhos.
Outro texto é o já citado do parábola do rico e de Lázaro. Nos padrões do mundo, o  primeiro era abençoado, o segundo um proscrito por Deus. Para Jesus, contudo, aquele, como o seu jovem interlocutor, confiava no dinheiro, nos bens e no estatuto socioeconómico, por isso era desprezado por Deus; e este dependia da misericórdia de outrem, e por isso foi acolhido por ele.

A conclusão do testemunho de Paulo serve bem de remate a esta reflexão. Com efeito, a pedagogia e o aconselhamento cristãos fariam bem, a este propósito, em refazer muitos dos seus pressupostos teóricos e respectiva aplicação prática. Medir o sucesso na carreira da fé pelo número de algarismos à esquerda da vírgula no saldo bancário tem feito estragos, não só à imagem do evangelho como à saúde espiritual de muitas pessoas que conheceram ou conhecem o desfavor, a pobreza, o desemprego, a falta, fazendo assim pior do que o mundo, que as condena, lançando-as para a geena reservada aos ímpios. Muitas vezes, o pecado da Igreja não tendo sido o da condenação explícita dessas pessoas, mas o da indiferença e da parca iniciativa face às questões da pobreza e da exclusão social. É tempo de a Igreja voltar a perceber que o seu papel é salvar e integrar, ser depositária das riquezas para as redistribuir, garantindo que todos no seu seio são alimentados e ninguém terá falta de nada. Assim, as palavras de Jesus aos que o seguirem parecem indicar que terão o usufruto de casas, terras, bens, e não necessariamente a sua propriedade. O que já não é coisa de somenos, pois não somos apenas mordomos, administradores dos bens que, na verdade, pertencem a Deus, não a nós (1 Pedro 4:10)?