E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina
Os Lusíadas (Canto I estrofe 33)
Camões foi a seu tempo, juntamente com a sua geração, um grande renovador e fixador de novos padrões e formas na língua portuguesa, na sintaxe, no vocabulário, na expressividade retórica e estilística. Justamente amanhã se celebra o seu dia, e com ele o dia da alma lusa.
E como organismo vivo, a língua continua hoje a ser reinventada.
Vem isto a propósito precisamente de Camões, não o Luiz Vaz, mas o Instituto.
Há uns tempos, ao consultar a página da Direcção Geral dos Recursos Humanos da Educação, do Ministério da Educação, sobre concursos de recrutamento de pessoal docente, verifiquei que não havia nenhum concurso aberto, mas sim um tal "procedimento concursal".
Um pro quê?
Como a responsabilidade sobre os concursos de recrutamento de docentes para os cursos de língua e cultura portuguesa para os ensinos básico e secundário passou para a alçada do O o Instituto Camões, tutelado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (que já tinha a responsabilidade sobre os concursos de recrutamento de leitores para as universidades estrangeiras), ontem mesmo, ao aceder ao portal de internet do Instituto, verifiquei que havia um "procedimento concursal" aberto para leitores.
Quando li isto na página do Ministério de Educação pensei que poderia ser uma de duas coisas: ou era da minha vista, ou era mais um neologismo da prolífera língua de quem escreveu essa enigmática expressão, o eduquês. Concluí que só podia ser de quem escreveu, e que a expressão viera de uma das cabecinhas pensadoras dos monstros Cila escondido num alto rochedo da Av. 5 de Outubro em Lisboa, e que mais monstruoso e temível ficou desde que se levantou a nova cabeça Prof. Doutora Maria de Lurdes Rodrigues.
Passado o susto, fui à minha vida. Até porque já não sou há três funcionário desse monstro, perdão, desse ministério. Olhos que não vêem, coração que não sente.
Eis senão quando depara-se-me no sítio internet do Camões a mesma medonha visão de palavras que antes me tinha traumatizado as tripas. Talvez as cabecinhas pensadoras da Cila que antes tinham trabalhado para o Ministério da Educação estivessem agora no Camões. O que estava recalcado veio à superfície. Nããããoooo!!!
Porém, uma rápida pesquisa na internet dirigiu-me a outras páginas de outros organismos da administração pública onde o monstro aparece, por exemplo, aqui, ou aqui.
No último link, o monstro é definido como "o conjunto de operações
que visa a ocupação de postos de trabalho necessários ao desenvolvimento das actividades e à prossecução dos
objectivos de órgãos ou serviços"…
Mas pergunto porque desenvolvimento não é "procedimento desenvolvimental". E aparece aí também o termo "recrutamento", e não "procedimento recrutamental".
Ai que do monstro Cila caí no monstro Caríbdis, pois os tentáculos aparecem por todo o lado! A expressão afinal não é da língua eduquês, mas de uma outra mais tentacular e omnipresente, o administrês, que subtilmente nos penetra em todos os poros e nos contamina o modo de pensar e de falar, e até eu já me deixei influenciar!
Ou então, visto de outra forma, não tão negativista, que plasticidade a da língua portuguesa!
Assim o Instituto Camõe, de mãos dadas com os demais órgãos da administração pública, faz a sua parte no fiel cumprimento da nobilíssima missão de defesa da lindíssima língua portuguesa, fiel dilecta da latina e tão semelhante à mãe. Perdão, da nobilíssima missão de procedimento defensal da lindíssima língua portuguesa – é assim que se deve dizer.
O Instituto fez jus ao nome do seu patrono.
Leitor, quando quiseres mandar outrem à fava, não o digas assim mesmo, com estas palavras mesmas, nem uses palavrões. E usar palavrões é banal e por isso deixou de ser dissuasor. Quão melhor não é usares uma outra estratégia que deixe o adversário de rastos, confuso, perdido, nauseado. Não entende que golpe baixo recebe, não tem anticorpos para ele e ei-lo a cair por terra, com uma dor de cabeça que lhe dá sensação de ter uma bomba-relógio lá dentro e com forte indigestão, sem conseguir conter o vómito.
Quando pois quiseres mandar alguém à fava, diz-lhe assim:
– Vai p'ró procedimento concursal!
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