terça-feira, abril 24, 2012

NO CAMINHO

caminhámos sobre as águas
e nelas semeámos a noite
para o amor feito
para nós

confiámos a distância
ao rio depusemo-nos de tudo
na luta contra as margens
até as mãos se reconhecerem no silêncio

unimo-nos
no segredo das árvores
lá, onde os navios
rasgam o caminho

Ri Miguel Duarte

23/04/12

segunda-feira, abril 16, 2012

MUDA

como um cordeiro que é levado ao matadouro ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador
Isaías 53:7

vi pelos olhos de Isaías
a ovelha levada
diante dos nossos olhos
em marcha lenta
sobre o gume da faca

os escombros do mundo
dissolviam as maçãs do rosto
a mão do carniceiro
não é menos áspera
mas quiçá será mais compassiva
e lhe aliviará todo esse peso
que lhe cerra a garganta

se o gume finda na ponta
vale mais apressar o golpe
para que de uma vez por todas
se solte e ecoe o grito emudecido
se solte a dor a derradeira
como feto retido no útero
o grito que pesa sobre a espinha

é urgente a declaração
de que a marcha do silêncio
terminou

lá, no lugar onde o céu
se rasga da terra
lá, onde vi a carne
posta perante Deus e os homens
a carne que cala a boca
do mundo


Rui Miguel Duarte
15/04/12

sábado, abril 14, 2012

CRIANÇA DORMINDO

dorme doce criança
dorme sem futuro
nem passado nem presente 
como quem está além da esperança
sem saber o que é não ser contente
ou perdida num túnel escuro
dorme a cabeça encostada suave
na coxa do papá faz o ninho a ave

14/04/12

segunda-feira, abril 09, 2012

HOJE, PÁSCOA

“Iam a correr…”
Evangelho segundo João 20:4

hoje preferimos
deixar o sono dormindo na cama
e correr, correr ao túmulo
porque nos disseram que a morte
havia de si própria fugido

deixámos tudo até o peixe
fazer a sua faina nas brasas
e a fome arder só ao lume
e correr, correr ao túmulo
porque nos disseram que a pedra
havia desertado

hoje preferimos
saltar obstáculos
e mesmo pisar urtigas com ambos os pés nus
porque nos disseram que a vida
conquistara o vento

preferimos ao linho
molhado em aloés
antes molhar as frontes
com a água corrente da vertiginosa pressa
de chegar ao túmulo
o lugar de descansar
do tumulto o coração

Rui Miguel Duarte
9/04/12


domingo, abril 08, 2012

O QUE SE MOSTRA

“Depois mostrou-lhes as mãos…”
Evangelho segundo João 20:20

mostro-te as minhas mãos
as mãos que reconheces
pelo toque vazio dos pregos

estas mãos que aspergiram
os rios imortais entre os montes
mãos que dispersaram
no firmamento as poeiras
do tempo
inaugurando o ciclo das estações
debaixo da pulsação do sol
que criaram as notas musicais
para tu cantares
mãos que esculpiram os rostos
dos homens em madeira rara

mãos cujos dedos são finos
como os das aves
e cujas palmas a morte
pouco a pouco amarrotou
até à extinção total

mostro-te estas mãos
que beijaram os espinhos
e deles extraíram latejante
a rosa

Rui Miguel Duarte
7/04/12

domingo, abril 01, 2012

TINTO

en tinta púrpura

da prensa escorre o poema da vida”

Ramón Blanco

esmaga a uva
até lhe retirar a tinta no palato
os dedos contam as gotas
que escorrem devagar
ao batimento de cada raio de sol

enquanto a aranha tece
a mortalha para a mosca
as pipas e tonéis abrem-se
de espanto para a nota rubra
de frutos silvestres
que sairá da obra de desespero das suas mãos

então, o que esmagou e matou
no lagar, lugar onde são as promessas geradas,
é o que dá a vida aos homens
é o sangue, pelo qual navega
tudo quanto resgata
ao adormecimento dos lábios
e tece na língua um poema tinto
de final longo

1/04/12

quarta-feira, março 28, 2012

OUTRA JERUSALÉM

“Construam casas para nelas habitarem; plantem hortas e comam do seu fruto.”
Jeremias 29:5

disseram-nos 
que construíssemos casas 
e as adornássemos de pomares
a toda a volta da nossa vista 
aí, dia a dia, faríamos amor 
até bisnetos nos nascerem 

disseram-nos 
que nessa terra ao plantarmos hortas
colheríamos paz, que muros 
não haveria que estancassem 
os nossos sonhos
nem o flagelo da fome nos puniria

e assim fizemos:
mesmo embutidos entre os rios
toda a terra 
é outra Jerusalém

26/03/12

terça-feira, março 27, 2012

BABILÓNIA

fora do mundo
descobrimos que há mundo
que há jardins e palácios
para lá do deserto
e também rios de águas vítreas

que para lá do choro e do riso
também há riso e choro
e que as lágrimas não são as últimas coisas
que derramamos
e que também aí a alegria se purifica

nunca imaginámos
que os caminhos do Senhor fossem
tão vastos e que o vento
levasse tão longe o aroma
do figo maduro

26/03/12

sábado, março 24, 2012

MEDITAÇÃO SOBRE O SALMO 137

recostamos os joelhos à beira dos rios
da Babilónia, os rios onde nem
os pés lavamos da marcha desde Sião,

mas os pensamentos vão lavados
e perambulam como corças
pela nudez acre da nossa terra
esfolada
perguntando aos rios se
haverá ainda por lá salgueiros em pé

é que nos arrancaram dos olhos
os contornos de Sião
e despojaram os nossos ombros
do linho de Jerusalém,
e nus nos deixaram
sem a túnica santa e branca que vestíamos
ao sábado

se de ti, Sião, a memória se escoar
nestas águas estranhas
que os dedos da minha mão direita
percam o tacto sejam como fantasmas
nas cordas da harpa

19/03/12

segunda-feira, março 19, 2012

MEDITAÇÃO SOBRE O SALMO 137

recostamos os joelhos à beira dos rios
da Babilónia, os rios onde nem
os pés lavamos da marcha desde Sião,

mas os pensamentos vão lavados
e perambulam como corças
pela nudez acre da nossa terra
esfolada
perguntando aos rios se
haverá ainda por lá salgueiros em pé

é que nos arrancaram dos olhos
os contornos de Sião
e despojaram os nossos ombros
do linho de Jerusalém,
e nus nos deixaram
sem a túnica santa e branca que vestíamos
ao sábado

se de ti, Sião, a memória se escoar
nestas águas estranhas
que os dedos da minha mão direita
percam o tacto sejam fantasmas
nas cordas da harpa

19/03/12

domingo, março 11, 2012

POR ONDE ANDA UM POEMA


Por onde anda um poema
um só esgaçado nas orlas da tarde?
um poema que não vá em modas
novas como uma brisa que não sacode
os nossos ombros

por onde anda um poema
um só capaz de rescender maresia?
dai-nos um desses à língua
sem lhe retirardes o sal

dai-nos esse pão nosso quotidiano
que perdoa todas as ofensas
e nos eleva às alturas do canto
a rasar as asas dos pássaros

buscamos esse poema
limpo da textura de água
em que a infância
encontre a sua casa

11/03/12

terça-feira, março 06, 2012

SEGREDO


Uma árvore tem sempre esperança; mesmo que a cortem, brota de novo e não pára de produzir rebentos.
Job 14:7

deixa-me contar-te,
criança velha,
o segredo da árvore

sempre de pé, mesmo quando
lhe deitam o tronco
e os ramos são separados do sol
mesmo quando suspendem
o abraço com o qual te consolavam
vegetal, e por isso
tão rente à terra

criança velha,
da árvore eis o segredo:
a raiz sempre permanece de pé,
apegada à fertilidade
do silêncio

6/03/12

NEVA EM VARSÓVIA

(a propósito de uma cena do filme O Pianista de Roman Polanski)

neva em Varsóvia
enquanto o fugitivo passa
com pés de pluma sobre as teclas
do piano dedo a dedo
sobre a cabeça enegrecida
que o chapéu esconde,

o fugitivo ao de leve entre os bicos
dos corvos e o piano é
à cautela uma labareda
sobre a cabeça enegrecida
mas mais negra ainda é a neve

1/03/12

domingo, março 04, 2012

NEVA EM VARSÓVIA

(a propósito de uma cena do filme O Pianista de Roman Polanski)

neva em Varsóvia
enquanto o fugitivo passa
com pés de pluma sobre as teclas
do piano dedo a dedo
sobre a cabeça enegrecida
que o chapéu esconde,

o fugitivo ao de leve entre os bicos
dos corvos e o piano é
à cautela uma labareda
sobre a cabeça enegrecida
mas mais negra ainda é a neve

1/03/12

sábado, fevereiro 25, 2012

PAROXISMO




μείζω γε μέντοι τῆς ἐμῆς σωτηρίας
εἴληφας ἢ δέδωκας
mais recebeste para minha salvação 

do que deste…”


Eurípides, Medeia v. 534-535


mais recebeste do que deste
o próprio nome te pus
na fronte o nome pelo qual foste retirada
dentre as bestas selvagens pois não sabes
mas os dentes que exibem são teus inimigos
e tu insistes, Medeia, e mordes nas crianças?
como desejei mudar o teu hálito de canibal,
ó mulher traidora da tua própria terra,
mulher de cabelos de vapor,
tu tão pouco me deste
e eu que tanto te dei, o nome de Hélade apenas
e com ele te dei tudo

23/02/12

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

OS BÁRBAROS

OS BÁRBAROS

Γιατί οι βάρβαροι θα φθάσουν σήμερα
“Os bárbaros chegam hoje”

Konstantinos Kavafis

chegam hoje, vêm para ficar
com barbas pintadas de sol
chegam ao amanhecer
quando os risos esperam o galope
dos seus cavalos de pompa

os bárbaros de barba que impõe silêncio
aos medos que no gume ferem o grito
da injustiça chegam hoje

eles sabem quem somos que temos poetas
dissimulados na facunda beleza dos frisos
e trazem uma nova alma nas barbas
finas como fios de sangue
a nova alma de que carecemos
a nova liberdade, liberdade das palavras
que são enganos

vêm, estão para chegar, arranquemos
de nós todas as dúvidas que nas espadas
das barbas trazem a solução, pois
mais não precisamos que da claridade
do ferro nos nossos rostos

22/02/12

sábado, fevereiro 18, 2012

QUEM OS DEUSES AMAM


Ὃν οἱ θεοὶ φιλοῦσιν ἀποθνῄσκει νέος

Quem os deuses amam morre novo

Menandro

os deuses amam
as tuas gargalhadas
e riem-se
encontram nos teus olhos
pérolas incandescentes
que anelam possuir
e para isso retorcem
os dedos

os deuses na tua boca
a voz amam
clamam pelo que tens
e eles não conhecem
e por isso no teu corpo jovem
acordam o sonho
e na mesma pressa de amar
to reclamam

quem os deuses amam?
que deuses amam?

18/02/12

terça-feira, fevereiro 07, 2012

ECLAIR


tes yeux de colombe
s’épanouissant en pétales d’ombre
tes yeux encastrés en arbre
dans un volcan de marbre
tes yeux de poussin
éclairant les premiers rideaux du matin

7/02/12


PIEGUICE


Não sejais piegas
— diz o governante ao povo
a excelência não anda às cegas
mas vive e trabalha com energia ele é novo

e aos gestos dá voz à voz largo espaço
com isto ensina uma imortal
lição à indolência  nacional
— fazei o que eu digo não o que eu faço

7/02/12



sexta-feira, fevereiro 03, 2012

BOA NOTÍCIA

Vasco de Graça Moura, ao tomar posse posse como novo presidente do Centro Cultural de Belém, em coerência com o que sempre tem defendido (e eu próprio defendo), decide abolir o Novo Acordo Ortográfico da documentação da instituição.