A CRISTOLOGIA
A doutrina central do Cristianismo, e aquela que está no fulcro da sua constituição enquanto artigo de fé e sistema de pensamento retoricamente elaborado, é a doutrina de Cristo, ou Cristologia. Esta centralidade radica na própria fundamentação etimológica do Cristianismo, que é Cristo, só se entendendo esta porque ontologicamente esta pessoa, Cristo, é a “pedra basilar” do Cristianismo. Assim, Cristianismo e a definição do que é ser cristão não se definem pela profissão e admissão como revelados e verdadeiros de um conjunto de artigos, preceitos, princípios, teorias e costumes, mas pela resposta a uma pergunta fundamental, que tem precisamente no seu núcleo o Cristo: “Quem é Cristo para cada um?”
Desde os primórdios que a questão da natureza de Cristo animou acesos debates doutrinários, movimentações diplomáticas, jogos de poder e concílios. Nas suas diversas e subtis cambiantes, suscitou divisões, perseguições e excomunhões, esteve na base da fixação de ortodoxias e da delimitação de heresias.
Serão apresentadas em síntese as várias doutrinas cristológicas da antiguidade cristã. O propósito é o de situar os debates e abrir portas para a compreensão de como que fixou uma doutrina e da multiplicação dos seus avatares até aos dias de hoje.
CRISTOLOGIA NAS SAGRADAS ESCRITURAS
Não será exagerado dizer que o principal texto definidor de uma cristologia puramente bíblica é o prólogo do Evangelho de João. Dir-se-ia a condensação de uma cristologia completa: aí o logos é identificado com a pessoa de Jesus Cristo, sem ser explicitamente designado, com Deus; por outro lado, é proclamada a sua humanidade. Esta cristologia é comum a outros textos e autores do neotestamentários, como se verá.
Assim, a afirmação da natureza divina surge claramente afirmada: este logos é Deus (1:1 θεὸς ἦν ὁ λόγος). É o logos incriado, mas entidade criadora, responsável única pela integralidade da criação (vv. 3) e que o evangelista teria por certo concebido à luz de Provérbios 8:22-26: a sabedoria, primeira obra de Deus, e arquitecta e engenheira da Sua criação.
Com a concepção do Cristo como o logos, João introduziu a questão da natureza de Cristo num contexto mais lato de debates teológico-filosóficos, vivos no seu tempo, que precederam a Encarnação e não se extinguiriam com o Pentecostes, situando a manifestação e revelação de Cristo como aquela que esclareceria de uma vez por todas a verdade acerca de Deus. As referências seriam provavelmente o estoicismo, o gnosticismo e as exegeses do tipo da do rabino judeu helenista Fílon de Alexandria (ca. 20 a.C. — 50 d.C.).
Precisamente Fílon, partindo da distinção dicotómica platónica entre os dois mundos, o perfeito (das Ideias e de Deus), e o material, imperfeito, reconhece a existência de um hiato intransponível entre os dois mundos, que impossibilita toda a comunicação entre os mesmos, e postula a necessidade de um nível de seres intermediários que servissem de ponte. O logos seria o grau mais supino destes seres, e Fílon chama-se “o primogénito de Deus”. Este logos seria um demiurgo, um ente criador. A figura do “anjo do Senhor” do Antigo Testamento seria para Fílon o logos de Deus. A este título, o que o prólogo de João pretende é estabelecer a perfeita divindade de Jesus Cristo.
Outros passos do Evangelho de João poderiam ser aduzidos em suporte da cristologia divina. Por exemplo, as declarações teonímicas aplicadas a Si próprio: Ἐγὼ εἰμι (ego eimi) — estas são as palavras registadas pelo autor do Evangelho dos ditos de Jesus, tradução grega do tetragrama IHWH, e que expressam em grego o mesmo que em português “sou eu” (simples declaração de identidade) ou “eu sou”, a declaração teonímica dada pelo próprio como Seu nome identificador exclusivo (cf. Êxodo 3:14–15). A expressão ocorre seis vezes neste evangelho: 8:24, 28, 58; 13:19; 18:6–7 (bis). Os três primeiros versículos citados situam-se numa contenda verbal com religiosos judeus. Jesus afirma aí a Sua identidade divina, tenda as reacções dos ouvintes sido de dois sentidos contrários: uns creram nele, outros rejeitaram-no e tentaram apedrejá-lo. Em 8:58, Jesus, à declaração de identidade, acrescenta que a ela era anterior à de Abraão. Em 18:6-8, o momento da anagnórise de Jesus, ao identificar-se perante os soldados que o que o procuravam no Getsêmani para o prenderem. Ao ouvirem a resposta de Jesus, os soldados caíram por terra, como se atingidos por vendaval.
Esta declaração de Jesus acerca de Si mesmo não se acha apenas, porém, no Evangelho de João. No de Lucas, 22:70, perante o tribunal judaico, a uma pergunta sobre a Sua identidade como Filho de Deus, transferiu o ónus da resposta para os próprios interrogadores, reiterando deste modo indirectamente a sua identidade: ὑμεῖς λέγετε ὅτι ἐγὼ εἰμι (hymeis légete hóti ego eimí) “Sois vós que dizeis que eu o sou!” No relato do mesmo episódio em outro sinóptico, Marcos 14:62, a declaração aparece também. Tratando-se do nome divino, o nome que nenhum ser humano poderia ter o atrevimento de pronunciar, muito menos aplicando-o a si mesmo, não será difícil de compreender, em virtude da mentalidade judaica comum, seria impossível outra reacção da parte dos sacerdotes e líderes religiosos que não a de indignação, escândalo e feroz cólera perante aquilo que, face aos seus princípios, seria a pior das blasfémias: que um homem se equiparasse ao Deus Eterno e Todo-Poderoso.
Merece também menção a este propósito a exaltação cristológica do hino transcrito por Paulo, na Carta aos Filipenses (2:6-11). Nele, Jesus Cristo é proclamado Κύριος Kyrios, “Senhor”, título que expressava a noção contida no hebraico Adonai, ou no tetragrama. Designar Jesus Cristo como tal implicava atribuir-Lhe natureza e dignidade divina. A visão de todas a criaturas ajoelhadas em sujeição a Jesus Cristo é uma paráfrase exegética de Isaías 45:23-24. Nesse passo, é IHWH (tradicionalmente traduzido em plenas maiúsculas como “SENHOR”) quem fala, anunciando que perante Si mesmo será essa sujeição. A exegese é inequívoca: IHWH é Jesus Cristo.
As declarações da identidade divina de Jesus, registadas pelos autores neotestamentários, serviriam pois para afirmar que a divindade de Jesus Cristo era a do próprio IHWH e que Jesus Cristo é o próprio IHWH, não uma segunda divindade e de inferior categoria.
A figura do demiurgo, como criador deste mundo e personagem distinta do Deus supremo, teria fortuna no gnosticismo, corrente cristológica mística e iniciática, fortemente influenciada pelas escolas filosófica platónica e pitagórica. Também estes estabeleciam a separação inconciliável entre os dois mundos. Se Cristo é divino, não pode ser humano, porquanto o perfeito não se pode manifestar nem tão pouco se misturar com o imperfeito e corrupto. Seria um ser puramente espiritual, sem nada de humano. E aqui surge o ponto a clarificar: o logos divino, porém, adquiriu natureza humana (v. 14). Tornou-se homem, “carne” (σάρξ sarx), e viveu no meio de homens. Precisamente este passo do livro de Provérbios, admitindo-se que se refira a Cristo, tem sido invocado em suporte de concepções diversas acerca da natureza deste. Os debates com os religiosos judaicos (e os Evangelhos em geral) transcritos pelos evangelistas têm a evidente virtude de circunscrever Jesus à humanidade, na sua vida e interacção com os outros seres humanos. A rejeição da encarnação, da humanidade de Cristo é, para João (cf. 1 João 4:2), marca distintiva do espírito do Anticristo. Assim, tanto o prólogo do seu Evangelho como a sua primeira epístola teriam como propósito estabelecer inequivocamente advertir a Igreja contra as doutrinas gnósticas, que desde cedo iam minando por dentro a saúde e unidade espiritual. Tanto quanto declara a divindade de Cristo, o hino da carta aos Filipenses afirma igualmente a sua humanidade, uma humanidade assumida na plenitude, em detrimento do uso de todas as prerrogativas da Sua divindade (vv. 6-8).
O logos do prólogo do Evangelho joanino, o criador de tudo sem o qual não do existe foi criado, está em harmonia com as restantes declarações cristológicas deste Evangelho e de outros livros do Novo Testamento. Este logos criador não é pois um mero demiurgo inferior e intermédio, mas o próprio Deus.
Em terceiro lugar, logos era a razão activa do universo e que o anima. Material, era frequentemente identificado com Deus e a Natureza. O logos seria assim como que a anima mundi, o princípio activo e sustentador do universo. O ideal de vida estóico era a conformidade com esse princípio. Esse logos estaria disseminado em todas os seres, incluindo nos humanos. Todos conteriam em si uma parte, uma “semente” de desse logos. Neste sentido se falava λόγος σπερματικός (logos spermatikós) “logos seminal”. Esta doutrina do logos influenciaria Fílon de Alexandria e a Literatura Patrística. Justino Mártir (m. 165 d.C.), por exemplo, colocou-a na ligação entre a velha filosofia helenística e o Cristianismo, que retoma a tese do λόγος σπερματικός. Também com os estóicos e o seu logos parece, pois, debater o prólogo joanino: o logos, esse princípio animador do universo, seria efectivamente Deus, o próprio, o criador e sustentador de todas as coisas.