E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. E Abel também trouxe dos primogénitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o SENHOR disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou. (Génesis 4:3-8).
Disse José Saramago que já desde há longa data achava a história bíblica da rejeição divina do sacrifício de Caim uma história mal contada. Finalmente, a concepção ganhou substância, deixou a mente e passou para o papel. E assim veio à luz o romance-tese Caim.
Suspeitei que algo houvesse nesse relato, sobretudo pelo não-dito, susceptível de fazer germinar a dúvida, o questionamento. Que fizesse suspeitar que esse Deus seria de facto arbitrário e governados pelos humores hepáticos, e que seria imparcial. Não que de facto eu cresse que esse fosse o carácter deste Deus – bem pelo contrário –, mas coloquei a questão prévia de saber se o texto permitiria essa leitura.
E reli o episódio.
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Lembrei-me dos meus tempos em que era professor em exercício. E o meu espírito viajou para uma sala de aula, onde uma turma de alunos trabalhava. Nessa turma, havia dois irmãos, Caíque e Alberto. Embora gémeos, eram diferentes como a noite e o dia. Nesse dia, o Dr. Elias de Deus, o professor, trazia os trabalhos classificados para entregar aos alunos. Chamou-os um por um, e entregou-os, com um pequeno comentário (remetendo embora para a apreciação escrita). O menino Alberto entregara um trabalho impecável: cuidado na apresentação, caligrafia bem desenhada, sem uma rasura; as margens respeitadas, sem que uma haste de letra ou um hífen a transpusesse; linhas de intervalo entre os títulos e corpo de texto; abertura de parágrafos avançada ao milímetro; fontes consultadas e referidas com os devidos créditos; texto redigido com esmero. Notava-se que o aluno levara a sério a tarefa, a disciplina, o trabalho e o próprio professor. Tendo em conta não apenas as capacidades e o grau de domínio das competências programáticas por parte do aluno demonstrado neste trabalho, e com especial menção o empenho e dedicação postos na sua elaboração, o trabalho colheu a aprovação do professor e mereceu-lhe um 18.
Já o irmão não era menos destituído de inteligência, talentos e capacidades de aprendizagem, ainda que em áreas distintas das do irmão. Caíque desejava seguir veterinária, ao passo que Alberto sonhava ser engenheiro agrónomo, ou enólogo. Tinha Caíque, porém, grandes diferenças em relação ao irmão. Não levava muita coisa a sério na vida. Sabia que para conseguir o queria da vida tinha de estudar, mas isso mais não era do que uma maçada e uma obrigação para ele, ter nota e o diploma ao fim eram tudo quanto lhe bastava. Tinha de estudar e tirar o curso, mas o caminho tinha de ser sem escolhos e com o mínimo de esforço. Cabular não era motivo de vergonha ética para ele, apenas um expediente técnico, um atalho, um meio perfeitamente justificado pelo fim. E apresentou um trabalho que era o espelho perfeito da sua postura e carácter: redigida à pressa, descuidado na apresentação, caligrafia com rasuras. Dir-se-ia que o tinha feito de véspera, a correr, pois tinha de estar pronto antes do jogo do Porto na televisão, imperdível. A despeito das capacidades do aluno, o Dr. Elias de Deus não podia deixar de ser justo e dar a nota adequada de acordo com o mérito: deu-lhe 8.
O negligente Caíque, cuja vida se regia pela máxima de que o caminho mais curto entre dois pontos é a recta, que em tudo se comparava com os outros, ressentiu-se da apreciação do professor. Queria o sucesso dos outros mas sem pagar o necessário preço. Considerava que o professor tinha sido injusto. Que professor difícil de agradar! Como nada podia fazer contra ele, teve inveja do irmão. E rosnou um outro queixume contra ele (“Que era sempre o Alberto, que se calhar ele nem era tão dotado quanto o Alberto, mas ao menos fizera o seu melhor – ou pelo menos o que pensava ser o seu melhor – e se isso não fora ). O Dr. Elias de Deus tratou logo de pôr água na fervura nas emoções que avassaladoramente perturbavam o rapaz, e de fazer um pôr em acção um pouco da necessária psicologia educacional:
– Caíque, para singrares na vida o caminho é esforçares-te. Terás novas oportunidades, no próximo semestre, com novo trabalho, e no exame. Faz assim e serás aprovado. Ficares furioso com o teu irmão não te fará aumentar a nota e nada te trará de bom. Essa oportunidade também a tens: dominar a tua ira. Também nisso está o crescer e ser aprovado.
O professor apresentou, como era regulamentar, relatório escrito circunstanciado de justificação dos casos de níveis inferiores a 10 (vulgo “negas”).
Os olhos e o coração de Caíque estavam vermelhos de raiva, e as palavras do professor, longe de os aplacarem, funcionaram mais como gasolina derramada no fogo. O seu senso de justiça própria não conhecia alternativa. No regresso a casa no fim de mais um dia de escola, pretexto de convidar o irmão a irem ter com umas miúdas com quem tinha marcado encontro, desvia-o para um lugar isolado. Joga-o ao chão, à traição.
Soube-se depois que o corpo de Alberto foi achado sem vida.
Dr. José Saratogo, o director executivo da escola, chamou o Dr. Elias de Deus ao seu gabinete. Fazia-lhe espécie a avaliação do docente aos dois alunos. Não compreendia nem aceitava o que entendia como descriminação do aluno Caíque em relação ao Alberto. Nem o fratricídio mudou alguma coisa ao juízo do Dr. Saratogo, homem que se prezava de pensamento heterodoxo e independente, e que se pautava por padrões muito próprios e pouco subsidiários do senso comum. A recepção ao docente foi pouco amigável, mas lacónica e esclarecedora:
– A senhora mãe do colega, a despeito do seu modo de vida que muito deve à virtude, ainda assim não desmerece do carácter ainda mais torpe do seu filho, o caro colega. O colega é o único culpado do acto desesperado do pobre Caíque. Como pode o senhor cometer tão grosseira descriminação? O colega, como professor, não é de fiar. O relatório que apresentou não passa de um manual de maus costumes pedagógicos. Aliás, professores como o senhor não existem. São produto inventado de mentalidades reaccionárias. E fique a saber que vou instituir o devido processo disciplinar ao colega!
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Regressei à Bíblia e às afirmações de José Saramago. Na li nem em abono da verdade tenho especial vontade de ler o romance Caim. Restrinjo-me pois ao que disse na ocasião e que o vincula, enquanto homem e pensador, a uma determinada tese a respeito da Bíblia, de Deus e do Deus da Bíblia.
A releitura do episódio bíblico de Caim e Abel não podia ter sido mais clara e cristalina. Lê-se que Caim ofereceu uma oferta e Abel outra. Da de Caim nada nos é dito sobre a sua qualidade: se foi excelente, boa, sofrível, medíocre, suficiente ou má. Simplesmente uma oferta. Da de Abel, todavia, lê-se que consistiu numa oferta das primícias e da gordura.
Entre os povos pagãos que praticavam a oferta de sacrifícios animais, a gordura tinha de pingar. Recentemente, no almoço convivial após culto de baptismos das igrejas filiadas na Aliança Evangélica do Luxemburgo, em Remerschen (no rio Mosela), assavam-se carnes várias na brasa. Um irmão brasileiro levara picanha. Servi-me de uma bela fatia e pus-me a separar cuidadosamente a gordura da carne – como é meu habito, pois sempre me repugnaram gordura e nervo. O irmão brasileiro sentenciou:
– A gordura é o melhor da picanha.
A qualidade da oferta de Abel era pois a melhor: não só deu a Deus o melhor da carne (a gordura), como deu das primeiras crias nascidas. Pôs o seu cuidado em honrar a Deus com o melhor que tinha e antes de pensar no sustento próprio. Assim se compreende que a sua oferta tenha honrado e agradado a Deus.
Em contraste, a omissão quanto à qualidade da oferta de Caim permite intuir que o zelo esteve ausente, que se tratou de uma simples oferta. Feita segundo a mentalidade medíocre segunda a qual “o que conta é a intenção”. Como se não houvesse solidariedade entre a intenção e a oferta consumada. Com efeito, para Deus, o Senhor, tudo quanto não é o melhor não passa de resto. Não há o segundo nem o terceiro melhor, apenas o melhor e o resto. Não partilho, de modo algum, numa exegese corrente, segundo a qual a oferta exigida por Deus era de sangue. Com efeito, na Lei levítica, admitiam-se ofertas de outro tipo que não apenas o de animais. Estas fariam sentido se se tratasse de ofertas de expiação pelo pecado. No caso de Caim e Abel, nada nos é dito sobre o tipo de ofertas em questão. Parece pois que o que esteve em causa foi a intenção, a atitude dos ofertantes, e como esta se traduziu em termos práticos, tão-só isso. A oferta de Abel representa a consagração a Deus do melhor dos seus fiéis, a expressão visível do amor e temor que Ele lhes inspira.
Esta é a evidente leitura que pode e deve ser feita do episódio bíblico. O texto não suscita equívocos. Qualquer outra leitura não tem respaldo no texto, mas tão-somente em pressupostos oblíquos. E foi em pressupostos que se baseou Saramago. Os seus pressupostos e preconceitos, de uma leitura oblíqua. Tinha uma ideia do que o texto dizia, um preconceito contra o Deus da Bíblia, mas não o conferiu, o fê-lo, mas sem o entender, logo obliquamente. E viu no texto o que nele não está, não vendo o que nele está. Trata-se de pura e simplesmente ler e interpretar o texto, mesmo como literatura, algo que se ensina aos alunos desde o 1.º ciclo do ensino básico. Tal leitura feita mereceria uma rotunda negativa se fosse feita por um aluno num contexto de exame. Feita por um prémio Nobel é grave, mas tem honras de destaque nos jornais, na televisão e nos blogs. Tem todo o direito de não crer em Deus, mas não de ler mal.
Esta é a razão por que o considero intelectualmente fanático e desonesto.