Um dia, lia este passo do Evangelho de Lucas (Luc 24:13-35) e detive-me a meditar no comentário desses dois homens: enquanto ouviam Jesus, mesmo não o tendo reconhecido no momento, o coração ardia-se-lhe no peito. Um misto de provocação, estímulo, entusiasmo, motivação, nova excitação emocional e intelectual provocada por algo que lhes era caro. Essa mensagem que introduzira vida nas suas almas era de novo ouvida, e causava o mesmo impacto. O coração e a alma desses homens estava pois ainda disponível, como músculo em carne viva, para serem percutidos pelo martelo da Palavra provinda da boca de Deus.
Apliquei essa meditação à minha própria vida. Sim, o meu coração deve arder ao ouvir a Palavra de Deus: essa era a lição. No encontro na estrada de Emaús, os acontecimentos de Jerusalém eram recentes. Talvez isso explique a sensibilidade emocional dos discípulos. Quando, como esses dois homens, me foi comunicada a notícia da morte e ressurreição de Jesus em meu favor e me dispus a dar a esse facto a devida importância, quando busquei nela a mensagem que pudesse mudar a minha vida, também o meu coração ardia. Nos primeiros meses, um ou dois anos, o meu coração ardia. Motivava-me ouvir, ler, aprender e discutir as Escrituras. Eram a minha paixão. Mudaram a minha vida.
E com o passar do tempo? Quando os acontecimentos que constituem o âmago do Evangelho — morte e ressurreição de Jesus — ficam mais distantes temporalmente? Não só isto, mas até mais distantes do coração, da alma, das emoções, dos interesses e prioridades pessoais? Porque já lemos tantas e tantas vezes as mesmas passagens e as histórias, lhes sabemos o fim e passamos obliquamente pelos pormenores das narrativas? Porque já conhecemos de cor e salteado as declarações doutrinárias e as promessas da Palavra de Deus, consideramos adquirido, quando não perdido, o que umas dizem e as outras prometem? Quem não já experimentou comer comida aquecida no micro-ondas, em vez de fresco maná quotidiano? Eu me confesso.
No deserto do Sinai, Deus alimentou o povo com uma ração diária de maná. Guardá-lo para o dia seguinte provou-se loucura, pois apodreceu e criou vermes! Esse maná era uma prefiguração do verdadeiro pão vivo descido do céu, Jesus. E se os Israelitas deviam ingerir uma ração diária, do mesmo modo precisamos diariamente do alimento que é Jesus, a sua Palavra e a sua presença. Mas não apenas isso: a lição que aprendi foi que, se devoramos diariamente esse bom alimento como se fosse novo, a nossa fome deve também ser nova. Nova a nossa antecipação. Nova a consciência da nossa necessidade. Todos os dias. É tempo de mudar a nossa atitude íntima, a nossa disposição relativamente à presença e à Palavra de Deus. De nos voltarmos a espantar, de nos deixarmos deslumbrar, de ficarmos boquiabertos e soltar diariamente um “Aaahhh!” de admiração pela constante surpresa e maravilha que são Deus, a sua Palavra, os seus planos, as suas promessas e as suas acções. De pensar que, quando julgamos já conhecer, então é que precisamos de verdadeiramente conhecer. De ter o coração em brasa, a alma em carne viva para receber de novo o Evangelho que nos confronto e nos corrige, mas igualmente nos consola e nos salva. Ou não dependemos do seu favor, mas da nossa experiência de vida cristã ou da maturidade e conhecimento alcançados. E entramos no terreno pecaminoso da presunção.
O apóstolo percebeu isto. Por isso escreveu, aos Filipenses, que deixara de pensar que poderia possuir algum motivo de satisfação e de basear o seu crescimento como indivíduo na sua própria maturidade, conhecimento ou experiência. Provara da excelência de vida que Cristo é, e deste modo percebeu como em si mesmo era incompleto e estava ainda em contínuo processo de amadurecimento. Por isso prosseguia, tendo Cristo como referência, fonte e alvo. Todos os dias.
Dispus-me, desde então, a tornar à Palavra de Deus como se ainda estivesse no início da caminhada cristã, como quem ainda está a aprender as letras.
3 comentários:
Excelente reflexão. Revejo-me totalmente nela. Obrigado. Um abraço
Sem comentários. Profunda, coerente, real a tua meditação.
Será que precisamos de enfrentar um deserto de 40 anos porque nos enjoamos do Maná que Ele nos envia?
Muito profundo, muito REAL, muito perturbante.
Muito obrigada.
God Bless you.
Bjs.
T.
Olá Rui, desculpa nunca mais ter dito nada. Tenho estado muito ocupada com o estágio.
O texto está excelente! Que todos nós possamos viver o nosso dia-a-dia com as entranhas em brasa por Aquele que nos amou primeiro.
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