O JUIZ E A BÍBLIA
O país recebeu com estupefacção e com justa indignação um
acórdão do Tribunal da Relação do Porto, assinado pelos juízes desembargadores
Neto de Moura e Maria Luísa Abrantes, em que condenam a pena suspensa marido e
amante de uma mulher pelo crime de violência doméstica. A estranheza e a
torpeza estão terem revertido a culpa para mulher e nos argumentos de
autoridade utilizados. A vítima mantivera uma relação adulterina, o que
constitui um “gravíssimo atentado à honra e à dignidade do homem.” Sendo o
adultério uma conduta condenada socialmente, seria de ver “com alguma
compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela
mulher.” Em virtude da deslealdade da mulher, o marido teria caído em depressão
e agido dessa forma. Em apoio da decisão, os juízes citam a Bíblia, na qual
lêem a condenação à morte a que a adúltera era votada, o facto de haver sociedades
que as mandam lapidar e, por fim, o Código Penal de 1886, que “punia com uma
pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério,
nesse acto a matasse.” Que interessa, para os doutos juízes, que os dois arguidos
tivessem agido em “conluio” (é o termo usado), marido e amante (recorde-se) que
tivessem, individualmente e em conspiração, perseguido, assediado, ameaçado,
raptado, humilhar, torturado violentamente uma mulher com uma moca com pregos? Que
interessa que tenham aceitado como demonstrado que os arguidos agiram
conscientes de que da sua acção resultaria para a vítima “mau estar físico e
psicológico, bem sabendo da especial censurabilidade das suas condutas, não se
coibindo, no entanto, de as levá-las a cabo.” Faz-se prova de que o arguido
marido caíra em estado depressivo, sendo para essa patologia medicado, mas
questiono se a se trataria de uma verdadeira depressão, porquanto uma patologia
destas conduz geralmente à prostração do doente em si mesmo, à inacção, não à
conspiração contra terceiros. Mas faço-o sem ser médico, apenas na qualidade de
curioso mais ou menos informado.
Toda a sentença se fundamenta em vetustos conceitos
culturais sobre os sexos, a dignidade e honra de cada. Patriarcado serôdio,
numa palavra, coisas que o Direito já há muito arrasou, pese embora, como se
vê, não terem desaparecido de certas mentes. Nada direi sobre o aborto jurídico
que este acórdão constitui, sobre a abominável fundamentação em que se apoia.
Já muitos se pronunciaram, e bem, sobre o dever de a justiça decidir com base
na Constituição da República, nas leis e nas convenções internacionais sobre
violência doméstica e direitos humanos de que Portugal é signatário. Nada
acrescentarei ao que já tem sido dito e escrito pela Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas, pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, e nos jornais
e redes sociais. Pretendo comentar a citação da Bíblia. A minha Bíblia. Ao
fazê-lo, não inauguro o gesto, pois já as cúpulas da Igreja Católica,
justamente, o fizeram. Nisto assoma já um grito: DEIXAI A BÍBLIA EM PAZ! Grito
incontido.
Como cristão, creio que a Bíblia é a palavra revelada de
Deus para ensinar, corrigir transformar o coração humano graças à presença de
Deus em Cristo. Foi escrita em momentos diferentes, por homens, a partir das
experiências destes, em relacionamento uns com os outros e com Deus. Ora, os Meritíssimos
juízes citam uma lei, a de Moisés, que declara que o adultério merece a morte.
O adultério é, com efeito, um mal: um desvio do amor de aliança em que se
fundamenta o casamento e a negação da promessa feita no dia do matrimónio.
Causa sofrimento no cônjuge traído e não um apenas atentado à sua honra e
dignidade. O “bom nome”, como sói dizer-se hoje. Sendo que o “bom nome” depende
incomensuravelmente mais do que fazemos do que aquilo que nos fazem. Mais mal
fizeram esses dois homens à sua própria honra e dignidade, muito mais mal
fizeram os Meritíssimos juízes com este arremedo de acórdão do que pela
aplicação recta da justiça.
Voltemos à Bíblia. Ora, como lemos no Novo Testamento,
Jesus Cristo cumpriu a velha Lei para que os homens, crendo n’Ele, fossem
declarados justificados por Deus. A Lei servia para mostrar ao homem que os
padrões divinos estão muito acima do que ele pode cumprir e que esse
cumprimento é efectivamente impossível. Os Meritíssimos juízes, ao citarem a
Bíblia, esqueceram-se dela. Designadamente do que disse e fez Jesus quando lhe
levaram uma mulher adúltera (João 8:1-11). Jesus não nega a falta da mulher,
mas perdoa-a, recomendando-lhe que mude de vida. Quanto aos seus moralistas
acusadores, próceres dos Meritíssimos juízes da Relação do Porto, despediu-os
com muito maior severidade: são corruptos na sua conduta e interpretação da
Lei. A sua consciência culpada remeteu-os ao silêncio envergonhado: culpados
hipócritas não estão em condições de julgar outros. No mesmo Evangelho (4:1-26),
relata-se o encontro com a samaritana. Nele, Jesus transpôs a barreira da
multi-secular discriminação dos Samaritanos pelos Judeus, a barreira da
distância recomendada entre um homem e mulher estranhos (como é hábito nos
países islâmicos), ficando-se a saber que essa mulher tivera cinco maridos —
sem que saibamos se por viuvez ou por ter os maridos dela se terem divorciado —
e vivia em concubinato com um sexto homem. Não teria passado sem censura dos
Meritíssimo Juízes da Relação do Porto. No entanto, Jesus, um homem e judeu,
tratou-a como um igual, um congénere da mesma humanidade.
O testemunho neotestamentário reabilitam e elevam o papel
e dignidade da mulher como nenhum outro. E recolocam o homem no papel e
protector da mulher. Amar é tratar bem, de forma a não provocar nelas amargura
(Colossenses 3:16). A responsabilidade do marido é acentuada em termos fortes
na I Epístola de Pedro 3:7: saber tratar a mulher com inteligência e tacto,
como alguém fisicamente mais fraco e que por isso carece de protecção, a ainda
com honra, porque homem e mulher são herdeiros da graça da vida em idêntica
posição. Não sendo assim, existirá barreira às orações dos homens diante de
Deus. Mas também na I Epístola a Timóteo 3:2: o bispo (ou presbítero, homem com
função de liderança numa igreja) deve ater-se a uma única mulher. Enormemente
contundentes são igualmente as palavras da Epístola aos Efésios 3:25: os
maridos devem amar as suas mulheres como Cristo amou a igreja, tendo-se
entregado por ela. Trata-se, por conseguinte, de um amor sacrificial, que pode
levar a que o marido esteja pronto a morrer pela esposa: morrer em vida,
figuradamente, entendido como dar-se a si mesmo e pôr de lado a sua
conveniência e interesses próprios para o bem e segurança da esposa e, literalmente,
morrer para a vida, morrer pela esposa.
Há muitas lições da Bíblia a que os Meritíssimos Juízes
não atentaram. Mas evidentemente, estamos no Novo Testamento. A Lei de Talião
terminara com o sacrifício de Cristo. Prestemos, contudo, uma atenção maior ao
Antigo Testamento, à velha Lei de Moisés. Levítico 20:10 prescreve que o homem
que comete adultério merece a morte. Deuteronómio 22:22 determina que tanto é
culpado o homem como a mulher que praticam tal acto. No II livro de Samuel,
caps. 11 e segs., lê-se a aventura de David, o rei, com Bateseba, mulher de
Urias, militar do exército israelita, e de como o rei ordenou que este marido
fosse deixado sozinho no núcleo de uma batalha, no ponto onde a refrega mais
quente era, de modo a ser morto e assim ficar escondida a vergonha de Bateseba
ter engravidado de David, não do marido. A ira de Deus recaiu sobre o rei,
adúltero e assassino. Pela Lei, merecia a morte. Não sobreviveu a criança,
sobreviveram os pais, acabando David por receber Bateseba como esposa, uma
entre várias. Desse casamento, nasceu Salomão. David reconheceu amargamente o
seu erro e foi tratado com misericórdia (leia-se o Salmo 51 a esse respeito). Em
vários livros proféticos do AT, a relação de Deus com Israel, Seu povo, é
alegorizada como a relação de um homem com uma prostituta, em virtude da
infidelidade daquele. Assim, por exemplo, o livro de Oseias. Indignação divina,
anúncio de justiça pelo delito sobre o adúltero povo, e misericórdia, paciência
que se renova. Nenhuma lapidação.
No relato genesíaco, lê-se que a mulher foi criada do lado
do homem. Não raro, e justamente, nos sermões das igrejas protestantes e
evangélicas se ouve que isto tem um significado profundo e óbvio: a mulher está
ao lado do homem; homem e mulher são companheiros, iguais em dignidade e
direitos e de vida. Semelhantemente, no casamento romano, a mulher pronunciava
a fórmula ubi tu Gaius, ego Gaia
“Onde tu fores Gaio, eu serei Gaia”. O esposo respondia: ubi tu Gaia, ego Gaius “onde tu fores Gaia, eu serei Gaio”. Com
esta fórmula se pretendia notar que, idealmente, o casamento era uma fusão de
duas pessoas iguais. “Serão os dois uma só carne”, nas palavras do Génesis.
Ainda no Antigo Testamento, o capítulo 31, o derradeiro,
do livro de Provérbios contém uma descrição da mulher. É um texto belíssimo. A
mulher figura aí como mãe de família, patroa, gestora da casa e dos recursos
domésticos como de uma pequena empresa, previdente e organizada, como educadora
e líder que provê ao bem-estar de marido e filhos. Muito longe do retrato de
uma mulher passiva, confinada ao gineceu, à submissão pela submissão, a um mero
papel cosmético e de genitora. Uma tal mulher confere estabilidade ao lar e boa
fama ao marido, envolvido na vida pública. Este, em contrapartida, admira a
esposa e prodigaliza-lhe elogios.
Os Meritíssimos juízes, para fundarem na Bíblia a sua
decisão, teriam muito mais onde procurar sobre a mulher, a sua dignidade e
papel. Não o fizeram. Retiraram dela o que lhes interessou. A Bíblia, embora
retrate culturas em que a mulher era tratada como ser menor, honra a mulher.
Porém, séculos e geografias têm havido em que não é assim. Os homens
adulteraram (sim!) o que ela ensina. Séculos de civilização judaica farisaica e
grega. Contra a tradição judaica, bateu-se Jesus. Entre os Gregos, é sabido que
o bom Aristóteles questionava se a mulher teria alma; a ela estava reservado o
papel de parir filhos e viver no gineceu, enquanto o marido exercia cidadania e
procurava satisfação com prostitutas e jovens adolescentes do mesmo sexo. Os
dois milénios de civilização dita cristã não foram menos culpados: o homem,
rei, nobre ou plebeu, frequentava bordéis e tinha amantes, gerava com gáudio
filhos bastardos, enquanto a mulher sofria em casa a rejeição, o ser apenas uma
entre as parceiras de cama do marido. Que o homem cometa adultério e vá às
“putas”, é normal; que a mulher o faça, exige lapidação!
A Bíblia, em suma, nada tem a ver com isto. A Bíblia
carece de ser interpretada e citada na transparência do que nela está escrito,
não apenas de uma parte. Hermenêutica e rigor científico. A Bíblia foi usada –
nos termos de Umberto Eco, a propósito do uso que fazemos de um texto,
colocando nele os nossos juízes culturais e morais prévios de modo a extrair
dela justificação para eles). O texto, cada texto, tem as suas regras próprias;
do leitor modelo é requerido que jogue essas regras, nele dispostas pelo autor.
Com efeito, ela tem sido o pretexto para muitas abominações praticadas pelo
homem, desde guerras santas ao segregacionismo branco sobre os negros. No
entanto, ela não é ouvida nem achada em nada disto. Bem pelo contrário: ela foi
e continua a ser uma fonte de sabedoria. Tivésseis dado à Bíblia a honra
devida, tivéssei-la, pelo menos, lido e, lendo-a, entendido, poderíeis ter-vos
permitido ser influenciados pelas suas palavras. Quão justas teriam sido,
Meritíssimos juízes, as vossas sentenças (Provérbios 8:15-16) e quão justamente
teríeis cumprido a missão que vos é cometida. Não o tendo feito, uma outra
jurisdição pende sobre vós. Sim, a da Bíblia que levianamente usais (Isaías
1:17, 20): Defendei os oprimidos; se o não fizerdes, sereis devorados pela
espada.
DEIXAI A BÍBLIA EM PAZ!
Publicado originalmente no blog Salmo Presente