quinta-feira, novembro 12, 2009

O CHORO DO REI


Assim que viu o Helesponto inteiro recoberto de navios, todas as suas margens e as planícies de Abidos cheias dos seus homens, Xerxes considerou-se a si próprio afortunado, mas em seguida chorou. Ao aperceber-se disso, Artábano, seu tio paterno, aquele que anteriormente exprimira livremente a opinião de que não era recomendável marchar contra a Grécia, esse homem, ao notar que Xerxes chorava, disse-lhe: «Ó Rei, quão díspar é a tua atitude de agora e a de há muito pouco! Primeiro, declaras-te a ti próprio afortunado, agora choras!» «É que me veio à mente – disse ele – lamentar a brevidade de toda a vida humana, pois, dentre toda esta grande multidão de homens que aqui estão, dentro de cem anos, nem um único sobreviverá.»

Heródoto, Histórias VII, 45-46

Xerxes, rei da Pérsia (entre 485 e 465 a.C.). É o Assuero do livro bíblico de Ester. Como todos os monarcas do imenso império persa, era designado "Rei dos Reis" (Shāhanshāh).

Dario o Grande, seu pai, falhara a invasão da Grécia (derrota em Maratona em 490), mas Xerxes decidiu continuar. Heródoto relata como esse rei orgulhoso, para passar o estreito do Helesponto (actual Dardanelos), manda construir pontes. Uma tempestade destrói-as, e o Rei, irado, manda executar os responsáveis pelas obras e, pior ainda, castigar o próprio mar. O castigo consistiu em repreendê-lo, dar-lhe trezentas chicotadas, lançar às suas águas duas penas e marcá-lo com ferros em brasa.

No auge do orgulho e da glória, ao contemplar as multidões dos seus exércitos e hostes de mercenários múlti-étnicos, deixa-se tocar por um sentimento de trágico próprio do pensamento grego. Lembra-se de que é um mero ser humano e chora, pensando que ele e os seus homens, enquanto humanos, têm uma curta vida. Artábano, seu tio paterno, que o aconselhara a não marchar contra a Grécia, vê-o chorar, e tem com o rei um diálogo sobre a vida humana, as calamidades que a atingem e o desejo que a todos num ou noutro momento toca de preferir a morte à dor de viver.

Morreria assassinado às mãos deste mesmo tio materno.

Não discuto aqui até que ponto há no episódio e no diálogo história, lenda, retoque literário dado por um espírito em várias ocasiões preocupado em transmitir testemunhos. A meditação sobre o humano, o tema e natureza do diálogo, no entanto, são muito próprios da sensibilidade helénica (já notórios na épica homérica, bem como em outros géneros poéticos e no trágico). Phthoneron theion: a divindade invejosa, que cerceia ao ser humano a delícia da vida, e a abate, por vezes cruelmente, pois só a ela, a divindade, está reservado ser makar, bem-aventurado.

E não só, são sentimentos transculturais, pois podem ser lidos em confronto com passos de livros bíblicos, como os de Job ou Eclesiastes.

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