Muito se tem falado ultimamente sobre violência em contexto escolar: alunos contra alunos, alunos contra professores, pais contra professores. Falar disso é mau e bom. Mau é uma evidência empírica de que esse mal existe. Bom porque ele é denunciado, enquanto algumas cabacinhas pensadoras com responsabilidade pedagógica, psicológica, política e administrativa preferem ignorá-lo, relegá-lo para os arrabaldes de meras "coisas de miúdos", de "excepções", explicáveis pelo contexto familiar, varrê-lo para debaixo do tapete, mudar-lhe o nome, como se isso eliminasse o problema. Há suicídios de alunos e professores, no auge do desespero.
Urge fornecer boas estatísticas, não manchar a reputação de Portugal como país de brandos costumes. Inculpar os culpados é impensável, pois não há culpa, porque castigar e falar de culpa é traumatizante. Há somente disfunções e problemas lá em casa, e isso explicaria tudo. No entanto, é o país que sofre de disfunção, e a única disfunção de que sofre – perdoem-me a grosseria – é a eréctil. Um país que não tem erecções de coragem para atacar os problemas masculamente e de frente e os resolver, como eles são, suicida-se a prazo. Vive-se ainda sem se conseguir superar o dogma sacrossanto do “bom selvagem”. Não é preciso ser cristão e crer na Bíblia para o saber e perceber: a psicologia secular, se ainda o não aprendeu, é arrogante e burra.
Sou aqui o narrador autodiegético de uma situação de violência no contexto escolar da qual fui vítima. Entre os anos lectivos de 2003-2005 acompanhei como professor de História e Geografia de Portugal e director de turma uma turma nos seus 5.º e 6.º ano, numa escola EB 2,3 do concelho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro. Sempre activo, sempre interventivo e atento, e sempre procurando resolver, e na hora, os problemas que se apresentavam, sempre comunicando com os encarregados de educação. De um ano para o outro, o comportamento geral, dentro e fora da sala de aula. Em certa ocasião, ao chegar à escola, funcionários comunicam-me que cinco meninos e uma menina da turma teriam estado a atirar pinhas fechadas uns aos outros. Não se feriram, felizmente, embora houvesse tal risco: pinhas fechadas são duras como peras. Mas feriram um vidro: 30 € de despesa. No inquérito que realizei os meninos sacudiram a água do capote uns para outros. Mas a maioria dos testemunhos, incluindo de outros colegas da turma e de outra turma que se encontrava junto da sala ao lado, apontava na direcção de um menino, a que chamarei Zé Maria. Um dos envolvidos disse que não assumia a denúncia porque o Zé Maria tinha “amigos”.
Na verdade, o Zé Maria era um rufia, preguiçoso, com um pai um tanto arrogante. Faltava frequentemente às aulas, sendo que no 6.º ano o problema apenas se tinha aligeirado. A mãe (encarregada de educação) justificava na caderneta, invariavelmente, com doença do seu rebento. Sem atestado médico. Ou com outros motivos mais peregrinos. Por exemplo, no 5.º ano, tinham à sexta-feira aulas de tarde. Certa sexta-feira, tinham teste de Matemática ao último bloco de 90 m do dia. Faltou todo o dia. Motivo: fora acompanhar o pai ao Porto e com isso atrasou-se. Assim certos pais justificam faltas dos filhos. E pior, em dia de teste. Havia, pois, um problema de “disfunção” nas funções parentais. O menino — ouvia eu de quando em vez da parte de outros colegas e de pais — ameaçava que um dia o pai viria à escola para bater no Director. Isto podia não passar de bravata entre pares, não rara em pré-adolescentes e adolescentes, sem maiores consequências do que as de uma boca insensata debitando estupidez. E nunca liguei nem me atemorizei com isso.
Como, porém, seis pré-adolescentes tivessem estado envolvidos e qualquer um podia ter atirado a pinha causadora do estrago no vidro (ou, o que teria sido pior, num olho dum colega), decidi, com a concordância da Vide-Presidente do Conselho Executivo, aplicar a justiça salomónica: seriam todos solidária e equitativamente responsabilizados pelo pagamento do dano e sofreriam todos a pena de serviço à escola, sob a direcção de um funcionário, em qualquer tarefa tal como a de limpeza do espaço escolar, com calendário e em horário estipulado. Os encarregados de educação compareceram todos e aceitaram, excepto os do Zé Maria. Como eu esperava, nem puseram os pés na escola. Limitei-me a informá-los por carta.
Os alunos cumpriram todos a pena e os respectivos encarregados de educação pagaram todos os 5 € por cabeça do novo vidro. O Zé Maria não só não pagava como ostensivamente se escusou a cumprir a pena. Por várias vezes o confrontei com o facto, em privado e diante da turma, nas aulas de Formação Cívica. Justificação da criaturinha: o pai não queria! Não é preciso dizer como eu ia aos arames com isso: um aluno e os pais quererem fazer as leis na escola! Tristemente, nem os outros cinco colegas tiveram a erecção de dignidade de se revoltarem, de se encolerizarem contra o colega que eles sabiam ser o culpado e que não sofria o castigo que eles estavam a sofrer. Por não se rir apenas da cara do Director de Turma e da autoridade escolar, mas igualmente deles. A única evolução na atitude do aluno e dos pais (ou da mãe) foi o facto de um dia ele ter trazido os 5 € de indemnização pelo vidro, dados pela mãe às ocultas do pai. Quanto ao cumprimento do castigo, népia neribi!
Por diversas vezes apelei aos mais altos responsáveis da hierarquia escolar, o Conselho Executivo, pedindo a sua intervenção, que chamassem o aluno e os pais. Como é habitual nestes casos, e inércia, a procrastinação é a praxis. Era-me dada razão moral, mas nada era feito. O Conselho Executivo agiria, mas tinha tantos processos e assuntos pendentes em cima da mesa… Eu não queria tomar a iniciativa de levar o menino pela força a cumprir o castigo. Ter-me-ei acobardado, temia a tal reacção do pai? Ou queria simplesmente que o assunto fosse tratado como deveria, institucionalmente? Querendo ao mesmo tempo evitar o tratamento emocional do mesmo, o recurso às paixões (ódio, fúria, cólera, raiva) e ao argumento da força física? Ou tudo ao mesmo tempo? Hoje não sei dizê-lo com clareza, nem dissecar as emoções. Talvez um pouco de tudo. Se a autoridade do Director de Turma era posta em causa, então a autoridade superior estava obrigada a intervir. Para mim isso era claro e assim deveria ser feito. Era-me impossível não sentir náuseas daquela situação de injustiça.
Certo dia (21 ou 22 de Abril de 2005), ao fim de uma tarde de aulas, estava eu na escola a tratar de assuntos da Direcção de Turma, após a aula de Educação Física. Nisto, encontro-me no pátio de entrada com a colega docente da disciplina. Aparecem alguns alunos da turma, entre os quais o Zé Maria. Um dos colegas ia precisamente cumprir mais uma sessão da pena de serviço. De novo questionei o Zé Maria porque não o cumpria ele também a pena, pois estava igualmente na sua hora. Respondeu que tinha treino de futebol a seguir. Irado, fiz-lhe saber que, por minha vontade e como era justo, estaria a cumprir a sua pena e em treino nenhum. E continuei a conversar com a professora de educação física uns dois ou três minutos, após o que me retirei. A reacção do mal educado rapazinho à minha repreensão foi jogar a mochila ao chão e pegar no telemóvel para ligar ao papá queixando-se de que o “Director não o deixava sair”.
Como tivesse o carro na oficina, pus-me a caminho de casa a pé, uns 10 a 15 m. Entre o episódio com o menino e a partida da escola não se haviam passado talvez mais de 5 m. Numa rua uma carrinha comercial pára ao meu lado: eram o pai e a mãe do Zé Maria. Houve discussão. Procurei chamar à razão o casal, observando que os assuntos de escola se resolvem na escola e não na rua, e que na escola as regras são as do Regulamento Interno da mesma e as autoridades são o Conselho Executivo e o Director de Turma. A mãe recomendava-me que olhasse para o meu passado e assegurava que no ano seguinte eu não estaria naquela escola. Respondi que ela não me conhecia para invocar o meu passado nem tinha poder para eu sair ou continuar naquela e que se não continuasse seria por efeitos do concurso. E queria seguir o meu caminho. A senhora desferiu uma bofetada numa das minhas faces. Não com um muita força, sem deixar marca, mas valeu pela atitude. Numa coisa me enganara: a violência veio da mãe e não do pai. O pai logo se fez grande perante mim (por acaso até era mais alto, mas fez-se maior): que eu não bateria à mulher dele! A minha resposta foi que não reagiria ao mal com igual gesto, mas que apresentaria queixa deles. Cheios de arrogância, desafiaram-me a fazê-lo, seguros de não haverem provas nem testemunhas do ocorrido e ameaçando-me que sabiam onde eu vivia.
Apresentei queixa no posto local da GNR. Contei o ocorrido ao Conselho Executivo, cujo Presidente, finalmente, passada cerca de uma semana, finalmente chamou o pai à escola e decidiu aplicar uma pena de serviço à escola ao heróico menino. A professora de EF foi minha testemunha de que não retive nem torturei o menino, da má educação deste e que rapidamente eu deixei o espaço escolar. O Presidente do Conselho Executivo também aceitou a meu pedido testemunhar do problema disciplinar e de falta de respeito de aluno e pais pela autoridade da escola, que conduziram ao episódio de violência. Chamei alguns pais e outros alunos da turma. Duas mães concordaram que as suas filhas testemunhassem que ouviram o Zé Maria ameaçar que um dia bater no Director. Uma dessas mães conhecia o pai desde crianças. Eram vizinhos. Esse pai era um rufia, como o seu filho. E os pais desse menino futuro pai tratavam as bravatas desse aprendiz de “hooligan” como personalidade forte. Por várias vezes essa mãe me advertira contra a linguagem arrogante desse pai. Eu nunca dera importância às tricas entre pais, antigos ou actuais vizinhos e ex-colegas de escola. Os professores são amiúde chamados para o interior de brigas, coscuvilhice e rivalidades entre pais, que lhes não dizem respeito. Como às bravatas dos alunos no recreio. Nessa circunstância, porém, tudo isso se tornava pertinente, e era legítimo eu capitalizá-lo para meu proveito e defesa. Até ao fim do ano lectivo o pai foi à escola uma vez, pedindo para me apertar a mão, justificando-se com o “stress” e preocupado se eu discriminava o filho pelo ocorrido entre os pais e eu. Que o previsível chumbo dele teria a ver com esse facto, e com as faltas dele. Respondi que não discriminava ninguém, que exigia de todos o mesmo e que o previsível chumbo (“retenção” na nomenclatura oficial) se deveria à não aquisição de competências escolares e comportamentais. Apenas. Como viria a acontecer.
A advogada do meu sindicato deixou-me desencorajado, uma vez que, segundo a sua experiência, não havendo testemunhas, o procedimento mais habitual do tribunal era o arquivamento do caso. E que este caso não deveria escapar ao que era habitual.
Como cristão, deixei com Deus o caso. Se os tribunais se demorassem ou nunca fizessem justiça, Ele o faria. Só queria que aqueles pais e aquele filho aprendessem uma valente lição. Continuei a minha vida, e no ano lectivo seguinte fui colocado em Chaves. Em Janeiro (se me não falha a memória) do ano seguinte foi enviada para a minha anterior morada carta do tribunal convocando-me como testemunha para julgamento de processo que o Ministério Público movera contra aquele casal. Já não era eu o autor, mas o Estado. Contrariamente às expectativas que me foram dadas, a juíza encarregada do caso deduzira acusação. E menos de um ano depois! A advogada oficiosa nomeada para defender o casal, tendo obtido o meu número de telefone, contacta-me propondo-me a eventualidade de desistir da acusação caso o casal me pedisse desculpas públicas diante da juíza. Não me repugnou a hipótese. Não pedia indemnização, e interessava-me mais que essa gente crescesse.
Nas vésperas do julgamento, em oração, vieram-me de Deus ao espírito palavras do livro de Provérbios nas quais se lê que o tolo se enreda com as palavras da própria boca.
No dia do mesmo (princípios de Fevereiro de 2006), a advogada de defesa procura-me, juntamente com o pai do Zé Maria, para reiterar a proposta de acordo. Nisto, intrometeu-se a procuradora (ou promotora, não sou especialista em direito) pública na conversa: eu não teria de ceder a proposta nenhuma de acordo se não quisesse. Até porque, tratando-se de crime contra funcionário público, era mais grave do que contra um cidadão particular e a lei não permitia outra coisa a não ser o respectivo julgamento.
Testemunhei eu: a atitude irresponsável desses encarregados de educação que permitem que o seu educando falte justificam faltas por motivos estapafúrdios; a sua arrogância, em especial do pai; que esperava agressão deste, e muito menos a mãe; que sempre desvalorizei as bravatas e ameaças do menino, pois nunca esperava que se concretizassem; que eu não pedira indemnização, apenas queria que eles aprendessem uma lição; face à tentativa de descredibilizar o meu testemunho parte de advogada que, concentrado na situação que vivia, dificilmente pensei em procurar testemunhas da agressão (havia uma esplanada nas redondezas, tentei que o condutor de um carro, que passara, parasse, embora sem sucesso).
testemunharam as minhas testemunhas e as do casal. Estas testemunhas eram chamadas uma por uma, depunham e retiravam-se. As duas meninas confirmaram o que haviam dito. O Presidente do Conselho Executivo de nada se lembrava… Tanta coisa, tantos assuntos e ocorrências, já antes tinha ido a tribunal por causa de outro caso. Como se lembraria de mais um? Nem se lembrava do que me dissera meses antes, que esse pai fora grosseiramente mal educado com uma educadora de um jardim de infância pertencente ao agrupamento de escolas a que ele presidia, a propósito de uma outra filha, mais novinha. Ele fora o professor de Matemática desta turma no 5.º ano. Parecia-me mais rígido no domínio da autoridade da escola e dos professores do que o anterior presidente (mais brando, por assim dizer). Afinal, enganei-me: os erros de “casting” muitas vezes não mudam com os actores… Parecia estar ali contrariado, num outro planeta… Temi pela decisão da juíza por causa desta testemunha. A professora de EF, porém, manteve que o menino foi mal educado, e que eu continuei a conversar com ela, após o que saí da escola. As testemunhas do casal eram duas vizinhas, que obviamente confirmaram o que toda a gente sabia, que aquele casal era gente do melhor.
A juíza, antes de dar por encerrada a sessão, perguntou ao casal se queria declarar alguma coisa, permitindo-lhe apenas que respondessem às perguntas que ela lhes colocasse. Negaram que me tivessem agredido ou ameaçado. Que a mãe ficara no carro a falar ao telefone. Que apenas queriam falar comigo. Que não sabiam por que eu os acusara, porque perseguia o filho. Inclusive, depois do episódio, que o pai fora à escola certa vez, ainda no 5.º ano, e pedira ao Presidente do CE para chumbarem o filho de modo que eu não continuasse a ser Director de Turma dele no 6.º. E que eu retivera o menino na escola pelo menos um quarto de hora. Nisto, não só me contradisseram, como também contradisseram o testemunho da professora de EF, ao qual eles assistiram. Imprudência.
Indignado, comentávamos, eu e a mãe dumas das meninas testemunhas, o desplante daquele casal em mentir e fazer-se passar por pessoas de bem. E questionei a razão de quererem um acordo, se afinal negavam ter prevaricado. No fim, apresentei estas apreensões à promotora (ou procuradora?). Respondeu-me com uma pergunta: o que esperava eu que eles fizessem? E tranquilizou-me: o meu testemunho fora sincero e convincente. Ficou com o meu endereço para me enviar cópia da sentença, que seria lida uma semana depois.
Recebi cópia. O casal foi considerado culpado e condenado a pena suspensa comutada em muitos dias de multa: ela por agressão e ameaça, ele por ameaça. No cúmulo, ascendia a quase 2 000 € (falo de memória). O testemunho do casal foi considerado contraditório. Efectivamente, cumpriu-se a palavra que Deus me dera: meteram os pés pelas mãos ao abrir a boca. Soube por essa mãe que o pai de um outro aluno da turma assistira à leitura da sentença, e que a juíza dissera, pedagogicamente, entre outras coisas, que assuntos de escola são para ser resolvidos internamente.
Ainda fiquei a perder com isto: deslocação, combustível, almoço, uma multa de estacionamento por não ter achado lugar decente para deixar o carro enquanto decorria o julgamento. O meu caso nunca foi comunicado ao Ministério da Educação para constar das estatísticas. Mas foi-me feita justiça. Graças a Deus. Infelizmente, quantos casos há em que isso não sucede? Com o silêncio ou, no mínimo, a inércia daqueles que deveriam ser mais expeditos a defender a justiça, a legalidade, a autoridade e a ordem nas escolas, em defender os profissionais que nelas trabalham seriamente (professores e funcionários) e em punir os alunos culpados, quando o são: os Conselhos Executivos.
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