O apologeta cristão Clemente de Alexandria (circa 150-215 d.C.), um dos escritores da mas alta intelectualidade dentre os Pais da Igreja (procurou harmonizr a verdade da fé cristã com o pensamento filosófico) escreveu que o pecado deriva da ignorância e resolve-se pelo conhecimento de Deus e pela bondade. Assim com Adão, que pecou ao ter fugido da educação divina. O primordial problema humano seria pois um problema de ignorância.
Assim ele se posicionou na sua polémica com o Gnosticismo de Valentim. O Gnosticimo era uma corrente doutrinária e de conduta surgida nos meios cristãos e cuja actividade as cartas neo-testamentárias, especialmente as de João, já denunciam. Eivada de filosofia helenística, influenciada sobretudo pelas radicais dicotomias "espiritual versus físico", de extracção platónica e pitagórica, advogavam que o conhecimento (gnosis) era o veículo que conduzia à plenitude, não a salvação nem o arrependimento, nem o novo nascimento. A gnose consistia na aquisição de conhecimentos secretos, misteriosos, iniciáticos, profundos, os verdadeiros conhecimentos, que se encontravam para aquém e para aquém das doutrinas correntes comuns. Estava pois apenas acessível a alguns, os que aderissem ao grupo, seus preceitos e fundamentos, e seguissem as suas normas de conduta.
A oposição que Clemente de Alexandria desenvolve ao Gnosticismo retoma os meus termos do antagonista: fala em conhecimento, e no cristão gnóstico, mas com distinções e inflexões de sentido: há um verdadeiro Gnosticismo e um falso. O falso é o dos Gnósticos. O verdadeiro é o cristão. Aqueles opunham fé e conhecimento e privilegiavam este; Clemente harmonizou-os: fé constitui a base de todo o conhecimento. O conhecimento, a filosofia por sua vez dá instrumentos de fundamentação racional ao Cristianismo, que lhe permitem posicionar-se em superioridade face os adversários intelectuais. O conhecimento ajuda a compreender as razões daquilo em que se crê. A fé confere salvação, mas o conhecimento torna o homem perfeito e torna-o um “cristão gnóstico”.
Sempre pensei, desde que me abracei a fé cristã, que o problema “homem” era o próprio homem e a sua índole. Antes mesmo já o pensava. A história humana estava lá, para o atestar. O “pecado”, como a Bíblia o qualifica. A perversidade, a maldade, a corrupção, o egocentrismo, variante mais estrita do antropocentrismo. Portanto, um problema de natureza, da physis, do ser, da ousia,. Conhecimento? Não seria mera cosmética, que embeleza a casca, quando a organismo padecia severamente na sua saúde (lembro-me aqui das dicotomias socrático-platónicas)? Mera transferência de responsabilidades? A equação de Clemente de Alexandria fez-me contudo pensar que de outra perspectiva, e voltar à fonte bíblica. Essa ideia não seria de todo descabida. É verdade que em seu entender o pecado não se perpetua pela hereditariedade, mas pelo exemplo. E que a sua concepção de gnose e a ênfase nesta são em não pequena medida subsidiárias das dos Gnósticos. Cristo é o bom médico, que comunica uma medicina que é a gnose salvadora, através da qual conduz os homens do paganismo à fé e desta ao conhecimento mais perfeito. Todavia, parece possível achar alguma relevância na inflexão de Clemente, designadamente se se fizer o essencial, que é a definição exacta dos termos, em geral e em particular, no todo e nas partes. De que se fala, de que fala ele quando fala de “conhecimento”?
A gnose clementina não consiste no conhecimento puramente intelectual (embora este seja necessário), nem esotérico, mas na busca de perfeição moral. Se o pecado se resolve pelo conhecimento de Deus, o seu império depende da ignorância e da alienação em relação a Deus. Este é o entendimento inferível de vários passos das Escrituras. No NT, em Actos os Apóstolos 17,30, I Coríntios 15,34 e Efésios 4,18 o pecado é assimilado à ignorância de Deus, constituindo consequência desta, e ao mesmo tempo causa dela, num ciclo vicioso. É bem célebre a declaração de Deus no livro do profeta Oseias (4,6): “O meu povo está destruído, porque não me reconhece” (versão BPT). Tão célebre quanto a que o próprio Jesus pronuncia, e que vai no mesmo sentido (Evangelho de João 8,32): “Conhecerão a verdade e ela vos tornará livres”. Relacionando esta última com outra declaração, muito arrojada, de Jesus (ib. 14,6), em que Se afirma como a “verdade”, facilmente se entende que a estrada da plenitude, da liberdade está no conhecimento do próprio Jesus, e de Deus, que é Jesus.
Estando prestes a expirar, Jesus dirigiu ao Pai uma súplica em favor daqueles que o haviam condenado à morte e que sobre esta festejavam (Evangelho de Lucas 23,34): “Pai, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem”. No estertor da morte, a não dirigiu a atenção para o pecado dos carrascos, não se irou nem se deprimiu por cause dele. Viu no pecado o problema mais remoto da ignorância. Isto não dirime a culpa dos carrascos, mas coloca-a numa outra perspectiva: a culpa existe, e por consequência o pecado, e consiste em se ignorar. Sim, aquelas gentes ignoravam Deus, pois se O conhecessem teriam reconhecido Jesus. E se ignorava Deus ignorava tudo quanto Deus é e Jesus mostrou com a sua vida: amor, graça, dádiva gratuita. Não sabiam quem era Deus, não o conheciam, e de si mesmas eras desconhecidas. Um viciado na droga, no álcool ou no jogo precisa de cair em si e se reconhecer como é, a sua imagem fielmente reflectida num espelho. Ao renunciar a alimentar o seu coração com uma imagem de si mesmo criada na sua mente para consumo próprio, como estratégia de auto-desculpabilização, reconhecer-se-á como aquilo que é, viciado, pobre de espírito, necessitado, carente, prisioneiro no fundo de um poço, limitado, inepto, humano. Ao confrontar-se com o próprio “eu”, levantará as mãos em clamor pela ajuda de uma terceira mão, que o arrancará da prisão em que o seu ser se acha. Essas gentes não eram capazes de enxergar um palmo diante dos olhos, para além da neblina mental, teológica e emocional que criaram, e recusavam-se a mirar-se noutros espelhos à excepção desses de feira, que distorcia a imagem reflectida, representando a sua obesidade como uma elegância de top model, que esbatia as rugas exibidas pelos seus rostos, que os fazia parecer mais altos do que eram.
O versículo 10 do Salmo 111 resume-o lapidarmente, constituído a fundação do livro dos Provérbios: “O princípio da sabedoria é o temor do Senhor; todos os que assim fazem têm entendimento.” Temer a Deus, crer n’Ele, honrá-Lo o suficiente para fazer d’Ele e da Sua Palavra o guia da vida, com renúncia ao próprio entendimento, ao próprio conhecimento, às glórias próprias e considerá-las como vaidade e escória (cf. Filipenses 3,8) em comparação com o conhecimento de Cristo — aí está o começo da sabedoria. O conhecimento de Deus não teórico, mas o Deus manifesto em amor, o coração e não no intelecto (Efésios 3,19). “Conhecer”, no sentido hebraico, que implica contacto íntimo, mesmo sexual, como entre os esposos. O Logos que se fez carne, e se faz carne, em nós. O desprezo destas coisas, pelo contrário, é causa de ruína.
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