"O reino dos antigos deuses não resgatou a morte / E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte"
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Senhora da Rocha"
Há manhãs que acordam nos rostos
opacos e escuros das tempestades
para nosso afrontamento, e que assim
nos conduzem a quebrar a aliança
que nos liga às coisas
à realidade
a estilhaçar o fio de prata
que nos liga ao corpo, ao chão fremente
mas tudo se pode afundar no mar
é então que sacerdotes de um culto estranho
nos aproximam do peito as facas
igualmente escuras e opacas
e no-las apontam com rigor ao coração
e nós derivamos o olhar, o clamor
para os recintos rasgados na terra
para os círculos dilacerados no céu
em demanda no voo das aves
de um olhar fresco dos deuses antigos
de uma voz que se fizesse ouvir
na vibração dos ares
nas paredes poliédricas de templos de seda
procurámos o reino, o lugar de repouso
a casa à beira-mar
mas nada nos resgatou da morte
nada desviou a sombra da faca
da aorta, para longe da boca do medo
o reino dos antigos deuses
não chegou ao nosso meio
porque era vazio e frio de granito
e quanto se exaltou o vento
assim se foi
e sem saber sabíamo-lo: buscávamos um deus
que transpusesse as paredes e o espaço
que morresse connosco a nossa morte
nos secasse o rio que dos rostos
nos colos das manhãs ainda caem
e nos desdobrasse as asas
da sua vida
Rui Miguel Duarte
04/09/10
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