O poema O Sentimento dum ocidental de Cesário Verde é um dos poemas mais conhecidos da literatura de pátria e língua portuguesa, e com justiça. É, aliás, um dos daqueles pelos quais tenho predilecção.
Integra o único livro do autor, O livro de Cesário Verde, publicado postumamente (1887). No poema, composto de quatro secções, o sujeito poético descreve uma experiência de deambulação pela cidade de Lisboa, pelo fim da tarde. Nele desfilam pessoas, tipos sociais, lugares, acções, objectos, edifícios, ao ritmo das impressões emocionais que o espectáculo urbano lhe provoca, entre ospleen, um desejo de evasão e um mal du siècle de fim de século XIX. O início marca o tom. Porém, todo o bom poema merece ser degustado do princípio ao fim. Por isso, transcrevamo-lo todo:
O sentimento d’um occidental[1]
A Guerra Junqueiro
I
Avé-Marias
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, Há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gaz extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se d’uma cor monótona e londrina.
Batem os carros d’alluguer, ao fundo,
Levando á via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, paizes:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações sómente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao hombro, enfarruscados, seccos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por beccos,
Ou erro pelos caes a que se atracam botes.
E evoco, então, as chronicas navaes:
Mouros, baixeis, heroes, tudo ressuscitado!
Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jámais!
E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra n’um tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
N’um trem de praça arengam dois dentistas;
Um tropego arlequim braceja n’umas andas;
Os cherubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os logistas!
Vasam-se os arsenaese as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E n’um cardume negro, herculeas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vem sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, á cabeça, embalam nas canastras
s filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã á noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se n’um bairro aonde miam gatas,
E o peixe pôdre géra os focos de infecção!
II
Noite Fechada
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e creanças,
Bem raramente encerra uma mulher de «dom»!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao accender das luzes;
Á vista das prisões, da velha sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abysma.
A espaços, illuminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas egrejas, n’um saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e funebre do clero:
N’ellas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela Historia eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construcções rectas, eguais, crescidas;
Affrontam-me, no resto, as ingremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, n’um recinto publico e vulgar,
Com bancos de namoro e exiguas pimenteiras,
Bronzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico d’outr’ora ascende, n’um pilar!
E eu sonho o Colera, imagino a Febre,
N’esta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectraes recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quarteis que foram já conventos:
Edade-média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampeões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir ás montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas d’ellas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; ás mesas de emigrados,
Ao riso e á crua luz joga-se o dominó.
III
Ao gaz
E saio. A noite peza, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó molles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguezinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de hysterismo.
N’um cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa pallidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lubrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo!
Sua excellencia attráe, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquella velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, á victoria, os seus mecklemburguezes.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentaes seccam nos mostradores;
Flócos de pós de arroz pairam suffocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrellas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
«Dó da miséria!… Compaixão de mim!…»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!
IV
Horas mortas
O tecto fundo de oxygenio, d’ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vem lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a chimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Collocam-se taipaes, rangem as fechaduras,
E os olhos d’um caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silencio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longinqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castissimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ageis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
N’umas habitações translúcidas e frageis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquaticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem arvores, no vale escuro das muralhas!…
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de soccorro ouvir, estrangulados.
E n’estes nebulosos corredores
Nauseam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amarelladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dôr humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
Fernando Pessoa e a sua geração reivindicaram a herança cesariana. Em 1912, no artigo “A Nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”, para a revista A Águia (2ª série, nº 9, 11 e 12. Porto: Set., Nov. e Dez. 1912), Pessoa designa Cesário um dos representantes da “poesia objectiva”. Em 1916, chama-lhe um “precursor inconsciente” do Sensacionismo português. E declara que a sua influência se fez sentir em Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Com efeito, é sobretudo no heterónimo autor da “Ode Triunfal”, que a poesia cesariana do quotidiano, da vida comum da cidade parece ter encontrado um mais notório avatar. Em “Ode Marítima”, Álvaro de Campo invoca explicitamente Verde como alguém próximo na estética, como um precursor na perscrutação das pessoas, das histórias e das vidas por trás de coisas triviais do quotidiano:
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes —
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Há quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.
O Sensacionismo é devedor do norte-americano Walt Whitman. Mas as marcas da deambulação emocional do sujeito poético pela cidade acham-se, por exemplo, na observação de Lisboa como porta para uma tripla viagem. Uma das viagens é pela evocação de outros tempos, redivivos no presente em que o poeta escreve, a partir do porto:
E evoco, então, as chronicas navaes:Mouros, baixeis, heroes, tudo ressuscitado!Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado!Singram soberbas naus que eu não verei jámais!
Álvaro de Campos expressa assim esta viagem mental de ida e volta ao passado, na “Ode Marítima”:
Homens do mar actual! Homens do mar passado!
Comissários de bordo! Escravos das galés! Combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!
A outra viagem é no tempo contemporâneo do poeta, mas para outros espaços. Lisboa ligava-se ao mundo, oferecia-se ao cosmopolitismo. Todavia, era sentida por ambos os poetas como um mero porto de partida. O mundo está alhures, alhures há outras coisas por ver e sentir. A porta mágica para a evasão de Verde são os pontos de transbordo, os canais de saída da cidade empírica, o caminho-de-ferro e porto. O poeta inveja esses outros que partem, invejando-lhes a fortuna:
Batem carros de aluguer, ao fundo, Levando á via-férrea os que se vão. Felizes!Ocorrem-me em revista, exposições, países:Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
O poeta de “Ode Marítima” invoca exclusivamente a tecnologia dos transatlânticos a vapor, que cruzavam a barreira dos oceanos. Tecnologia estabelecida no século de Verde, expandiu-se significativamente no novo século. O expoente de tecnologia no século XIX eram os comboios, e Portugal não escapou a tal progresso, tendo sido o seu território semeado de via férrea, por mão de Fontes Pereira de Melo. A sua acção, primeiramente no Ministério das Obras Públicas, que criou, depois em outros ministérios e finalmente como Presidente do Conselho de Ministros (1871-1877, 1878-1879, 1881-1886, designação dada, até ao Estado Novo, ao cargo hoje denominado Primeiro-Ministro), traduziu-se, marcadamente, na construção de estradas, caminho-de-ferro, industrialização (Este nome ficaria, por esta e outras decisões. Por estes motivos, do seu nome é oriundo o neologismo fontismo, que designa uma acção governativa caracterizada por um acentuado investimento em obras públicas e vias de comunicação. Na História mais recente de Portugal, foi com termo utilizado para designar a política de Cavaco Silva enquanto Primeiro-Ministro e do Ministro das Obras Públicas Joaquim Ferreira da Amaral, um século posterior à do seu antecessor e modelo. O caminho-de-ferro, pois, era então a via de ligação geográfica mais utilizada e mais veloz entre Portugal e o resto do mundo – na visão dum ocidental de então, restrita à Europa, sendo Lisboa e S. Petersburgo os pontos extremos da ocidentalidade. A poesia do hodierno de Verde, como a de Campos, não ignora este elemento, mas dá-lhe lugar importante. Do mesmo modo, Campos, o poeta sensacionista e futurista, evoca como típico da sua época os vapores. Que tecnologia evocaria se escrevesse hoje, um século depois do poeta de “Tabaqueira”?
Assim, Campos saúda um “amigo casual” que vai encetar uma viagem num desses engenhos (um vapor, tecnologia de ponta no tempo da escrita). Casual, logo efémero, fátuo e passageiro, porque a época das máquinas e da velocidade a isso se presta.
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer espécie de deveres.
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai ele tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora…
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto…
Neste trecho, Álvaro de Campos mistura as duas viagens: a temporal “por onde as naus estiveram / Outrora, outrora…”; e a espacial “Para Cardiff? Para Liverpool?”. Mas há uma terceira viagem nos dois poetas, já um pouco aflorada nas linhas anteriores: a viagem psicológica: o mal-estar de viver demanda a evasão e assim se cumpre na perfeição a fúria sensacionista. Evoca-se a evasão física, geográfica, mas é sobretudo a mental que os poetas almejam. Portanto, regredir ao passado ou partir para outros lugares, mais cosmopolitas, viajar no tempo ou no espaço aparecem como pretextos para escape de almas poéticas cativas de mal de vivre. Esta viagem comanda as outras, tudo se reduzindo afinal ao partir e estar longe, um longe de si próprio que é mais nítido em Campos e na geração modernista do século XX.
Na segunda estrofe do seu poema, Verde expressa a sensação de enjôo provocada pelo gás. O ar da cidade, poluído, contribuía para a melancolia e sensação física de náusea. O gás era o combustível utilizado na iluminação urbana, antes da generalização da electricidade. E é na terceira secção do poema, “Ao gaz”, quando a noite já plena “esmaga”, que emerge a salvação, a nota singular de alegria de toda a deambulação:
N’um cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
Uma nota de esperança, que poderia salvar o poeta. “Salutar” e “honesta”, n’um mundo de soturnidade, miséria social, económica e moral, e de hipocrisia. A deambulação pela noite pára um momento diante do calor da cutelaria e da padaria. Um assomo de coragem: que o concerto entre “real” e reflexão (“análise”, ou como dirá Pessoa ortónimo), o “fingimento”, lhe dessem um livro que “exacerbe”, que ultrapasse os limites da estética e se torne quiçá um poder capaz de influenciar a sociedade. O real dá o mote, contém os elementos a caberem no livro. A poesia, na sua ars poetica, deseja exibir e conter o real e reflectir sobre ele. Mas acaba por sentir a frustração de “Não poder pintar / Com versos magistraes, salubres e sinceros” esse real urbano, moderno, inestético e banal. Terá a poesia de esperar pela formulação mais febril desta aspiração expressa na “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos? O poeta, afinal, não encontrou — ou nem sequer procurou — consolo; antes prossegue com as suas deambulações, e com estas continuam a entrar e desfilar no poema o pó, as luzes mortiças, o sufoco no ar que respira, a miséria de um mendigo cuja fortuna sofreu uma revolução, pessoas personagens várias, vivendo “emparedadas”, lojas e tabernas, em suma, o real que lhe causa odesejo absurdo de sofrer. Afinal, o desejo é de poesia, e esta existe, revela-se, exacerbante, úbere da “Dôr humana” e das “marés de fel” que a compõem.
A mim, como leitor, foi o último verso desta estrofe que me salvou. Uma noite acabada a comer pão quente, acabado de sair do forno, era bem acabada. Tinha necessariamente de ser um epílogo. Na década da minha primeira juventude (os anos 80), algumas madrugadas de boémia acabaram assim. No Mercado da Ribeira, havia uma casa que era santuário de peregrinação de noctívagos. Havia outras dessas padarias, noutros locais.
A vida, a condição e a idade cessaram de ser desta sorte, pelo que desconheço se ainda existem padarias dessas, que de madrugada servem, salutarmente, o bom pão quente, fresco do forno, redenção de noctâmbulos e foliões. Contudo, as voltas da vida levaram-me, mais recentemente, a exercer por um período de tempo um emprego no Luxemburgo em horário nocturno. Nestas desoras, o que o meu ser todo cobiçava era uma fleuriane (uma baguete artesanal feita de farinha de tripo isenta de aditivos, com crosta estaladiça sob a qual se esconde um miolo de gosto pronunciado) da minha padaria francesa de Herserange, para comer bem recheada em opíparo pequeno-almoço. Antes de ir dormir, à hora a que a maioria da gente descreve o movimento contrário, o pão, ainda quente do forno, era o meu epílogo de dignidade e honra, de saúde e salvação.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.
[1] Segui, naturalmente, a ortografia da 1.ª edição, da responsabilidade de Silva Pinto.
Publicado primeiramente no Jornal Tornado